Enquanto
caminho despreocupadamente pela orla da praia, me deparo com o por do sol
recheado de lembranças e de cores. Paro. Observo. Contemplo. Encontro um banco
de madeira avermelhada e mordiscada pelo tempo. Sento-me. Espero.
Enquanto
meus olhos percorrem, sem nada ver, aquele espetáculo de cores quentes e frias,
de um amarelo ouro casado com o alaranjado típico do fim da tarde e das veias
do outono que tingem a tela azulada do começo do crepúsculo, repenso metade de
minha vida e de meus momentos mais recentes.
O
começo do momento crepuscular está exatamente de frente para mim, mas meus olhos
semiabertos enxergam algo que está bem além daquilo e que se espalha muito além
das cordilheiras dos níveis mais altos do oceano. Meu olhar se perde nos fios
de memória que estão sendo tecidos em minha mente. Pisco algumas vezes.
Respiro. Espero.
E
nesta meditação me encontro pensando em coisas que jamais aconteceram, mas que
são minhas mais preciosas memórias. O primeiro beijo com meu antigo amor que
jamais aconteceu, nosso casal de filhos que jamais nasceram, nosso casamento
que nunca se concretizou, nossos anos de namoro que nunca existiram. Me recordo
do meu primeiro passeio montado num dragão, do meu primeiro voo conduzido por
fortes ventanias e pelas infindáveis batalhas que duelei para defender o
castelo. Memória de sonhos. Sonhos de vidas passadas? Devaneios.
Sorrio
pra mim mesmo contemplando minhas loucuras. Sacudo a cabeça, meneando-a pro
lado. Pisco um par de vezes e começo a me recordar de coisas reais. E sou
invadido por uma felicidade sem precedentes. O meu primeiro beijo real, a sensação
do primeiro estalar de lábios, a sensação do contato com o outro corpo e o
susto e emoção momentâneas que vieram tão absurdamente recheados de euforia e
confusão. Lembro-me, então, do meu primeiro dia no haras, da primeira vez que
cavalguei aquela égua negra gigantesca que tanto me encantava, na sensação do
vento nos meus cabelos soltos e no cheiro da grama molhada invadindo minhas
narinas enquanto galopava pela colina verde do sítio. E me recordo das tardes
agradáveis e barulhentas que tive com amigos ao redor de uma mesa, alguns
papéis, infinitos dados, lápis, borrachas e livros com figuras e cálculos e
histórias fantasiosas.
Me pego,
enfim, pensando em quanto tive sorte nessa vida. Em como tantos outros não
foram agraciados com a facilidade de se ter um coração bom, uma família sólida
e amigos verdadeiros. Começo então a filosofar com coisas mais profundas, com
coisas mais minhas e somente minhas. Como as coisas podem ser tão diferentes de
pessoa pra pessoa? Como podem existir um sem números de universos diferentes em
um único mundo? Como é discrepante a diferença e distância entre as pessoas,
entre os mundos, entre os “universos particulares” e suas particularidades! Uns
com tanto e outros com tão pouco e uns com tanto mas com nada ao mesmo tempo e
outros com tão pouco mas com muito e com o suficiente. Um número absurdamente
grande e infinito e perspectivas em uma única cena. Essa vida é muito estranha.
Chego
então num canto estranho da minha mente. E encontro uma questão que até então
perdido em meios aos meus botões e borbotões, sequer havia pensado: quantos
corações eu despedacei e quantos despedaçaram o meu? Será que eu fui a paixão
escondida e secreta de alguém? Será que alguém já me amou em segredo? Me amou
tanto a ponto de sentir-se sufocado, de chorar a noite pensando no possível
amor impossível? E será que eu não reparei sequer uma vez no olhar brilhante e
na presença arrebatadora de tal ser? Como se sentiu a primeira garota que
entregou seu coração em forma de bilhete quando eu, sem saber o que sentia ou
como reagir, devolvi com pesar o cartão pedindo desculpas por não corresponder?
Como ficou esse pobre coração?
Matuto
então em quantas vezes eu entreguei secretamente meu coração, em quantas vezes
amei escondido e em quantas vezes segreguei tal sentimento dentro de mim. Penso
nas noites que passei em claro apenas admirando uma foto, em quantas manhãs
acordei sorrindo somente por ter sonhado algo bom com o alvo de minha paixonite
secreta e em quantos pedaços meu coração se desfez cada vez que via que seria
algo impossível sem saber que poderia ser possível. Quantas pessoas foram? Me
recordo de cada nome, de cada rosto, de cada cheiro. Foram poucas as quais me
entreguei inteiro, que entreguei verdadeiramente meu coração. Uma, em especial.
E como quis me entregar de novo pra outra pessoa e fui largado pra trás como
uma marionete velha e sem cordas.
Mas,
será que alguma vez eu fiz algo parecido com outra pessoa? Será que eu fui alvo
de ódio, da raiva, das lágrimas de alguém? Penso nisso e isso me assusta. Ser
um dos seres que tanto xinguei e que incessantemente chorei durante as noites
entregue aos fios prateados das lágrimas parece-me completamente angustiante e
desesperador.
E
começo numa linha que termina num círculo, obviamente, sem fim. Quantas vezes
fui enxergado como um amigo falso, como um alguém ausente, injusto, grosseiro,
mau, cruel ou alguém a ser odiado? Será que alguém já falou de como eu sou
hipócrita, duas caras, detestável, nojento ou falou mal do mim? E será que
alguém já falou que secretamente me amava, que eu fui um bom amigo, alguém que
tenha me defendido e eu jamais fiquei sabendo? Será que alguém já me descreveu
como alguém que jamais desferiu uma palavra de pouco afeto a alguém ou como um
amigo maravilhoso ou uma ótima pessoa, uma pessoa iluminada ou me engrandeceu
sem eu ao menos imaginar? Ou que já tenha falado coisas hediondas e
completamente desagradáveis sobre mim?
Tantas
dúvidas, tantos “se’s”, tantos caminhos que poderiam ser percorridos, tantas
visões diferentes de um mesmo instante, de uma mesma pessoa, de um mesmo lugar.
Como saber de tudo? Como sentir tudo, conhecer a todos, agradar a todos? “Impossível”,
já penso de imediato.
Levanto
o olhar e vejo o sol deixar a praia. A imensa bola alaranjada já está no fim.
Seus raios já não tão quentes e de um alaranjado em degrade tão morno e distante
já se esvai, dando lugar pra imensidão arroxeada e azul do início da noite, que
chega com seu manto frio, abraçando a todos com seu hálito banhado em estrelas,
como pequenas aranhas de luz pregadas no teto.
Me
levanto, deixando a belíssima visão para trás. Um belo quadro, um esplendoroso espetáculo
que ficou ofuscado pela enxurrada de memórias e perguntas. E, no final, quase
nenhuma resposta. A única certeza que tive ao abandonar o banco de madeira para
trás foi que, com certeza,
a vida é muito mais do que a realidade.