Uma intempérie aponta no horizonte. O céu, antes azul e calmo, já
sepulta sobre nós uma chuva não tão fina que despenca de um mar de nuvens
lapidadas em mármore frio e acinzentado. Nuvens duras e intransponíveis que
choram, gritam, ecoam tristes lamentos, criam bocas enormes, sopram ventos que
irão uivar tempestades.
O pobre navio jaz frágil no meio do mar revolto. Ondas gigantescas que
crescem ainda mais vêm bater seus cabelos de água e espuma na madeira lascada
da embarcação. A construção gira, balança e sacode ao bel sabor da tempestade e
de seus ventos caprichosos, que sopram as águas, as ondas, as velas, o navio. E
o pobre homem que está dentro dele.
No interior do barco um homem chora. Suas vestes já não são mais belas
e seu corpo já padece pelas feridas embatumadas que lambem sua pele. Está
cansado, com frio e com medo. Sua carcaça repousa pesada no chão frio de
madeira, escorado em um pedaço de pau que faz as vezes de pilastra e que
sustenta boa parte do piso superior do navio.
O homem parou de chorar. Agora treme, escondendo o rosto sob as mãos
calejadas e fracas. E ele olha pra mim, mas não para mim. Seu olhar atravessa
meu olhar como uma faca quente na manteiga fresca. Seus olhos são tristes e
bordados de lágrimas. Parece querer me dizer alguma coisa. Ele abre a boca
murcha e fina. Seu rosto parece retorcido de dor. E ele grita. E continua
mirando seu olhar em mim. Mas... ele olha pra mim? O que eu estou fazendo num
navio? Acordo de sobressalto. A testa pintada de gotículas de suor, o corpo
dormente e endurecido, os cabelos desarrumados. Me localizo no meu próprio
quarto, passo as mãos no rosto e no cabelo, os olhos fechados. Bufo. Estava dormindo.
Deito pesadamente a cabeça no travesseiro já não tão mais fofo e encaro
o teto branco. O sol ainda não nasceu e nem o canto dos passarinhos eu escuto.
No silêncio que agasalha a minha madrugada fria e solitária eu deixo de encarar
o teto e acabo encarando a mim mesmo. O sonho que tive pareceu um breve e
literário resumo desses últimos dias. Tenho me sentido perdido... perdido e
sozinho. Com medo. Como se eu estivesse abandonado no meio de um oceano caótico
e não soubesse nem ao menos para que direção tentar nadar.
Minha pacata e rotineira vida deu uma reviravolta em suas poucas voltas
que me tirou do eixo e me deixou às voltas comigo mesmo. Os amigos já não
parecem se importar tanto, os abraços já não parecem mais tão apertados e
acolhedores, as vozes já me soam tão nítidas e melodiosas. E,
por causa dessas voltas, reviravoltas e piruetas, me surpreendo perguntando a
mim mesmo aquilo que sempre temi perguntar: quem sou eu? Quem, exatamente, sou
eu? E por incrível que pareça eu já não sei mais o que responder. Estou
perdido.
Antes eu estava na minha torre alta, encarapitado no meu castelo
perolado e intransponível. Hoje passeio junto a plebe com minhas roupas
rasgadas e rio um riso desdentado junto aos bêbados dos becos escuros e
purulentos. Quem sou eu? Já quase não me reconheço ao olhar no espelho... os
olhos, os cabelos, as pintas, as curvas... já não fazem mais sentido. Já
parecem não completar mais umas as outras. Quem sou eu?
Volto ao meu
quarto. Já não tenho mais castelo de pérolas nem a torre mais alta. Volto a ter
todos os dentes, o sorriso cheio e o rosto comum. Viro na cama e encaro a
parede lisa. Nem um raio de sol entrou pelas frestas da janela (ainda não era
hora do sol acordar, mas eu não sabia as horas). E, por sorte ou azar, me
lembro de um certo alguém. O olhar, o sorriso singelo e marcante, o rosto
bonito. A testa lisa, os cabelos lisos, as mãos lisas. Inúmeros encontros
noturnos, beijos no meio da tarde, mãos entrelaçadas. Uma corda no pescoço.
Pensei, erroneamente, que já estava preparado. Que nada mais me
atingiria. Confiei demais nos calos que calejaram meu ser e nas inúmeras
barreiras e portões que coloquei em mim mesmo. Confiei demais. Sei que não me
entreguei por inteiro. Respeitei meus próprios limites, suas próprias
fronteiras, nossas próprias barreiras. "Eu gosto de você..." E, assim, me
coloquei em um lugar que não era meu. A queda foi dura, silenciosa, vazia.
Pensei ter atingido um ponto que eu nem ao menos cheguei perto. Iludido pelo
meu próprio ego. Subi no topo da montanha, admirando a enseada logo abaixo. Subo no galho da frondosa árvore que está logo abaixo de mim, sentando confortavelmente em seus galhos. Algo me incomoda a garganta. E caio. Sem tocar o solo. A corda no pescoço me segurou. (In)Felizmente.
Acordo novamente. Os olhos abertos no supetão do susto. Pisco algumas vezes. Volto a mim mesmo. A tela do celular incomoda. A luz
está forte demais. Mesmo assim forço a vista e deslizo o dedo pela tela.
Conecto-me num ambiente imenso e repleto de tudo. Mas ainda assim vazio pra
mim. Como se eu estivesse andando por um salão de festa e as pessoas
simplesmente desaparecessem a medida que eu caminho em direção ao centro da
pista. Como se a luz fosse tragada por mim, assim como um buraco negro que
desliza sorrateiro por uma galáxia e puxasse para seu próprio vazio cada
centelha de tudo e mesmo assim permanecesse vazio.
Mas, quem sou eu? Sou o navio? O homem? O castelo? O plebeu? O ser
preso confortavelmente no alto da torre? O iludido? Quem sou eu?
Não sei responder. Pelo menos não agora. Vou me voltar para mim mesmo. Tentar
encontrar a direção enquanto tento boiar no mar revolto. Se as velas do meu navio
ou as paredes do meu castelo ainda conseguirem resistir à fúria tempestuosa dos
ventos e das ondas, conseguirei encontrar o norte, a terra prometida, o solo
fértil. Ou não.
Meu corpo flutua envolto nas águas do mar furioso. O azul profundo me
cerca. Gostas caem no meu rosto apavorado. Olho pesaroso para o céu e estendo a
mão, suplicando para que alguém que estivesse acima de mim me puxasse, me
salvasse. A única resposta que tive foram as gotas finas e geladas que
continuaram a cair no meu rosto encharcado. Um trovão ressoa retumbante e forte no firmamento. O coração acelera, o sangue aumenta sua velocidade, o corpo treme.
Abro os olhos novamente. Cochilei. Estou na minha cama... de novo. Viro
pro outro lado encarando a porta. Me cubro para tentar proteger do frio sereno
que a noite está soprando. Algo me incomoda. Coloco a mão no pescoço. A corda!
...
E o navio afundado que nunca afunda continua a ser lançado pelos
ventos. Os cabelos de espuma e água das ondas nervosas continuam a bater no
casco. O velho ainda está tremendo.
...
A figura disforme ainda está arrumando sua coroa brilhante no alto de
sua torre mais alta. O castelo continua a brilhar suas pérolas. O plebeu
continua a dançar uma dança pagã e cigana. Os dentes ainda faltam.
...
O corpo ainda balança para lá e para cá com o colar de corda no
pescoço...
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