quarta-feira, 18 de abril de 2012

~ Gabrielle

Eu ainda me lembro, como se fosse ontem, de como ele surgiu em minha vida. Era uma noite quente de verão e as pessoas passeavam barulhentas e felizes pelas ruas de Paris. As vestes pesadas e as longas saias das nobres damas passavam pelos paralelepípedos tortos das ruas, enquanto jovens senhores faziam suas elegantes bengalas dançarem por entra os dedos e por entre as fendas das pedras.
Era 1872, disso jamais esquecerei. Eu estava na calçada, conversando com outras moças, aproveitando a brisa suave e morna do verão parisiense. Foi quando eu o vi. Do outro lado da rua, tão elegante, tão suave, tão envolvente. Seus longos cabelos escorriam em cascatas de ondas pelos ombros cobertos de finos tecidos negros. Uma cartola encarapitada na cabeça, levemente de lado. E um olhar... por Deus, que olhar. E estava olhando para mim. Para a comum Gabrielle.
Corei levemente, sorrindo sem graça e cobrindo o rosto com meu leque. E voltei a atenção para as moças que me acompanhavam. Ao olhar novamente, o rapaz já havia sumido. Mais tarde, naquela mesma noite, enquanto tomava uma xícara de chá e apreciava a maciez dos biscoitos do Café de Flore, ele voltou. Esgueirou-se entre as mesas, fez uma leve reverência e convidou-se para sentar-se comigo. Viccent era seu nome.
Ele era tão delicado e tão sagaz, tão singelo e tão forte, parecia frágil e resistente ao mesmo tempo. Sua pele era de um branco suave e marmóreo, seus olhos de um castanho claro, quase avermelhados, contrapondo com sues cabelos e vestes muito negras. E um sorriso de dentes albinos e perfeitos. Conversamos sobre tudo aquela noite, os assuntos simplesmente surgiam. Despedimo-nos naquela noite como velhos amigos e combinamos de nos encontrarmos novamente, na noite seguinte. E assim se repetiu, por dias seguidos.
Ele me envolveu com seu olhar, suas palavras, sua gentileza, seu charme, de uma forma tão forte e sutil que quando dei por mim estava perdidamente apaixonada. E então, numa noite clara, com o céu rasgado por milhares de estrelas, ele se ajoelhou e abriu uma caixa de veludo, de onde um anel com um robusto diamante cintilava. E eu disse “Sim”. Beijamo-nos como nunca havíamos feito. Uma entrega de amor puro, de desejo e de felicidade.
Mas algo me apertava o coração. Vicent recusava cada pedido meu de apresentar-lhe a minha família ou de encontrarmos mais cedo, passear sob o sol aconchegante pelos campos. E tinham noites que ele ficava estranho, pálido – mais pálido que o comum – e sumia, por 2 ou 3 dias. E voltava o mesmo Viccent de sempre, amável, singelo e amoroso. E o temor sumia.
Em uma noite silenciosa e estranhamente quieta, minha irmã Gennevive e eu fomos passear. Acontecia uma mostra de arte nas ruas do centro. Telas e mais telas, com suas cores e texturas espalhavam-se pela rua, transformando aquele lugar num verdadeiro carnaval de cores e formas. Andamos por entre as telas e Gennevive resolveu comprar um confeito enquanto eu observava uma tela grandiosa e azul.
Mas ela estava demorando demais. Percorri o caminho até a barraca de confeitos, mas não a encontrei. Foi quando um grito agudo e doloroso cortou meus ouvidos e rompeu o burburinho da mostra de arte. Era a voz de Gennevive. Corri em direção ao grito, sem nem ao menos saber onde estava indo. E me deparei com uma cena digna de um dos quadros funestos dos artistas franceses que ali estavam. Ao lado de uma antiga fonte, o corpo de minha irmã jazia sem vida, abandonado por qualquer que tenha sido seu algoz. E dessa vez o grito foi meu.
Gennevive era tudo pra mim. Irmã, amiga, companheira. Enterrei naquele dia mais que o corpo de minha amada irmã. Junto dela ia um pedaço de mim, um pedaço que eu jamais conseguiria preencher. E o que mais me entristecia, era não ter o meu adorado Viccent comigo. Até o funeral, já havia 4 dias que ele sumira, dizendo que precisava terminar alguns negócios.
Dois dias após o sepulcro de minha irmã ser fechado, Viccent retornou. Encontrou-me no nosso Café, onde eu me debulhei em lágrimas e lamentos. E ele somente afagava meus cabelos, numa tentativa frustrada de me consolar.
O tempo passou e já começava a planejar nosso casamento. Foi quando Viccent me contou seu segredo e disse que não poderia se casar comigo. Um vampiro. Ele me disse que era um vampiro. Olhei incrédula para ele e pus-me a rir, pedindo para que ele falasse sério. E ele voltou a repetir. Eu estava tão carente e tão ensandecida de amor que me dispus a ir com ele, a me entregar a suas presas e tornar-me parte daquilo.
Após muita discussão, Viccent finalmente me transformou. Uma pontada inicial e uma dor lancinante que se arrastava pelo meu corpo, indo do pescoço até os últimos centímetros de mim. E me tornei o que sou hoje: uma vampira.
Vivemos juntos sob as ruínas da Bastilha durante meses. E nesse tempo Viccent compartilhou de um tudo comigo: presas, sangue, histórias, segredos... e uma derradeira vítima do passado. Alimentei em meu peito e em minha mente um rancor e um ódio gigantescos e os transformei em força, traçando um futuro.
Hoje sou eu quem costura a dor nos lábios dos mortos, seduzindo jovens rapazes e vez ou outra, belas damas. Enquanto isso o corpo apodrecido de Viccent jaz inerte, pregado por uma estaca em uma das paredes das ruínas. Descanse em paz, Gennevive. Sua morte está vingada...

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