E, enfim, eu parei de me desesperar por
tudo que vinha de você. Para mim, no início, podia parecer bem desesperador mas
eu realmente não me importo tanto quanto já me importei. Já não sinto
necessidade de me drogar com meus pensamentos sobre você, com minhas ilusões
sobre você. Já não quero mais me envenenar com o líquido quente que eram os
sonhos que vinham com sua presença e nem preciso tanto de ouvir sua voz ou ver
seu rosto ou ler sobre você. Isso já passou.
Houve um tempo em que cada esquina de
sonho era você, em que cada suspiro tinha seu nome, que cada lágrima vinha
batizada com um momento seu e que cada segundo tiquetaqueado no relógio emergia
com seus olhos embebidos em saudade. Houve um tempo de amor puro, sincero,
leal, verdadeiro e desesperador. Um tempo de entrega total e absoluta. Um tempo
de um eco surdo, mudo e vazio. Um tempo que eu já não quero mais. Passou.
Eu te amei. Te amei de verdade. E não
serei hipócrita e dizer que já não te amo mais. Ainda te amo, mas não com a
mesma intensidade, não com o mesmo desejo, não com o mesmo amor. Passei tempo
demais submerso no abismo gelado que foi o seu coração que acabei me
acostumando com as feridas dos sopros gelados que eu recebia, com os cortes
finos e profundos que eu colecionava de suas estalactites e estalagmites
tantas. E congelei. Mas isso passou.
Hoje, enfim, consigo olhar para trás e
ver que as cores que te pintei eram mais azuis e mais vivas do que imaginava.
Mas essas cores vivas eram incapazes de surtirem qualquer efeito na sua tela
que parece possuir a profundidade de um pires. Distribuí gratuitamente minhas
cores, minhas pinceladas, minhas tintas. Entreguei cada pedaço de mim, cada
gota de inspiração e de vida que poderia haver dentro do meu pote chamado “eu”.
E, ao olhar com mais cuidado, percebi que sua tela era imensamente porosa,
tragando tudo para si e vertendo um massivo, desbotado e absurdo
"nada". E já não sei se as poucas cores que obtive de sua pintura em
mim eram reais, se eram suas, se eram sinceras. Passou.
Olhei em volta. Agora que reparei: as
minhas próprias telas estavam inacabadas e manchadas. As cores de outrora não
haviam sido retocadas e desbotavam com o passar do tempo. Miro meus pincéis
paras as telas esquecidas e começo a repintá-las. Já que não tenho mais tanta
necessidade de gastar minhas tintas e minhas cores e meus brilhos com sua tela
e poderei, enfim, repintar as minhas. Gastarei cada nuance de púrpura, cada tom
de vermelho e cada escala de cor da qual disponho para pintar minhas próprias
telas e ofertar essas cores tantas para quem realmente se interessar e para
quem conseguir ver as minhas cores verdadeiras.
Pensei, por um tempo, que eu seria capaz,
que eu era capaz de ver as suas verdadeiras cores. De ver as suas cores de
verdade, as suas cores reais. Aquelas que você ainda não teria tido coragem, ou
talvez oportunidade, de mostrar a mais ninguém (ou talvez não tenham tido
paciência nem carinho suficiente para olhá-las e reparar). Mas, pelo visto, me
enganei. Parece que a única coisa que consegui de você foi um céu poeirento,
uma luz ocre com uma gota singela e minúscula de tinta, que talvez tenha
escapado sorrateira do pote. E decidi aceitá-la.
Bom, se foi tudo que você conseguiu doar
a mim, usarei-a para terminar sua obra eternamente inacabada. Darei a última
demão com essa gota no seu retrato de memória e o guardarei. Quando, enfim,
tiver terminado as minhas telas e minha galeria estiver sepultada sob o céu
escarlate do fim, tentarei olhar com carinho para cada tela. Tenho certeza que
a sua, que antes vomitava cânticos de maldição e vazio de tudo, poderá cantar
um brilho prata de esperança. E poderei perceber que valeu a pena.
Mas, por hora, não irei me ater a essas
cores, a essa tela ou a esse brilho de futuro inacessível. Continuarei a não me
embebedar de você. Continuarei a não tomar nenhuma dose sequer do licor amargo
que eu teimava em adoçar. E se eu sentir novamente as malditas borboletas
pintadas com suas cores desbotadas batendo asas salientes pelo meu estômago
tratarei de colocá-las de volta no seu sono profundo de crisálida. Elas que
pintem o meu interior com suas cores outra hora. Quando suas asas estiverem
finalmente prontas.
Quem sabe não poderemos repintar o seu
quadro? Mas desta vez deixarei os pincéis descansarem. Eles devem estar prontos
para parirem a vida quando as suas cores verdadeiras estiverem prontas.
"Parece que a única coisa que consegui de você foi um céu poeirento, uma luz ocre com uma gota singela e minúscula de tinta, que talvez tenha escapado sorrateira do pote. E decidi aceitá-la."
ResponderExcluirEu amei esse trecho com todo o meu coração. ALiás, toda a metáfora do texto é linda, clara e intensa.
O seu estilo transmite TANTO da sua personalidade... Fico feliz por você escrever textos tão seus, tão maravilhosos e incríveis quanto você. Daria o mundo pra saber no que você estava pensando quando escreveu esse.
<3