- Artemis. O que você vê?
...
O mundo estava entregue a guerra
e a revolução. Levantes começavam aqui e ali, bombas explodiam e esburacavam a
terra, o som das batalhas perfuravam os ouvidos a cada dia sem descanso. Desde
que os "Abençoados" foram revelados e tiveram seus poderes e dons
expostos, a Terra nunca mais foi a mesma. A batalha por divisão de territórios
e pela supremacia de poder começou serena, mas logo se alastrou como praga. E
tudo mudou.
Era 13 de Agosto de 2353. Um
menino apareceu na televisão dizendo que podia fazer coisas incríveis. E
realmente conseguia. Todos puderam ver nos seus televisores, celulares e outros
meios de mídia o jovem planar a alguns poucos metros do chão e depois alçar um
vôo cortante e rápido. Ele foi o primeiro de muitos. Depois da primeira
exposição, mais e mais pessoas com poderes fantásticos começaram a surgir;
alguns por vontade própria, outros expostos por amigos, parentes e vizinhos.
Parecia ser tudo maravilhoso. A criminalidade havia caído vertiginosamente,
doenças eram curadas pelos que tinham esse dom, desastres eram evitados. Ia
tudo muito bem. Até aparecer alguém que resolveu usar um "Abençoado"
como poder bélico. "Por que não?"_diziam eles. "Serão nossa
melhor defesa!"
De repente, mais e mais
"Abençoados" eram levados a campos de treinamento em todo o mundo.
Laser dos olhos, fazer flores e árvores brotarem do nada, bolhas e faíscas
saltando de dedos, fogo das mãos, campos de força, força descomunal, poderes
espantosos. E depois de um tempo, já não havia mais volta. Em 2398 a I Grande
Guerra explodiu entre os continentes. Praticamente todos os países estavam no
meio e queriam tomar a supremacia, usando os "Abençoados", que antes
ajudavam as pessoas comuns, como armas e aumentando seu poder bélico. A Terra
ficou em chamas em menos de 20 anos.
05 de Abril de 2369. Os campos
de treinamento, ou "Santuários" como eram chamados, já abarrotavam o
globo. Cada vez mais "Abençoados" eram trazidos para os pátios
cercados de muros altos de pedra e vigilantes encarapitados nas torres. Naquele
dia, duas novas aquisições adentravam os grossos portões de ferro: Caleb, de 13
anos, que diziam poder projetar um campo de força, e Victória, de 11 anos, que
podia dar vida aos seus "amigos imaginários". Um grito de agonia
ecoou de uma das celas no interior do complexo de pesquisa assustando os
novatos.
Caleb era magro, a pele muito
branca e os cabelos vermelhos num corte alinhado. Entrou cabisbaixo e receoso,
andando apressado mas com passos curtos, levantando o coturno no caminho
poeirento. Era um menino desconfiado e levemente inseguro. Havia descoberto
seus poderes quando alguns garotos implicaram com ele. Juntou as pernas e
colocou os braços protegendo a cabeça dos chutes. De repente tudo parou, não
sentia mais os chutes ou os socos. Abriu devagar os olhos e mal pode acreditar:
um escudo feito de nada se projetava ao seu redor. As crianças caídas de lado
olhavam assustadas para o menino, enquanto oficiais da guarda vinham em sua
direção. Três dias depois estava sendo enviado para o "Santuário".
Victória era uma menina baixinha
de cabelos negros e dedos ágeis que praticamente não saía de casa. Vivia
desenhando e inventando mundos paralelos. Tinha alguns amigos no colégio, mas nada
se comparava com as criaturas fantasiosas que habitavam sua mente e faziam às
vezes de melhores amigos. Qual não foi o espanto de seus pais quando, de
repente, os "amiguinhos" da filha começaram a aparecer pela casa.
Primeiro foi uma mistura de pato com rinoceronte feito de pelúcia andando na
pia da cozinha. Depois, pássaros de papel cor-de-rosa voando pelo teto e
robozinhos azuis perambulando pelo carpete da sala. Não tardou para que uma
vizinha contasse para um oficial que vira a menina brincar no quintal de casa
com um mestiço azulado de ouriço com lula do mar, tomado chá em cadeirinhas de
plástico. Dois dias depois já estava adentrando os portões do
"Santuário" com seu ornitorrinco de pelúcia a tira colo.
Fora colocados em celas
vizinhas, de 2 metros quadrados e cobertas de uma cor cinza e sem graça. Um
beliche ornamentava o lugar ao lado de uma pia simples embaixo de uma janela
gradeada. Victória iria dividir a cela com Daniela, uma menina gorda que fazia
o ar vibrar ao bater palmas, enquanto Caleb dividiria com Júlio, um menino
risonho que podia copiar as coisas que tocava. Nas celas do lado viviam
crianças, jovens e adolescentes que podiam fazer de tudo; desde soltar fogo
pelos dedos até se multiplicar ou ficar invisível. Olharam a lista de
atividades na parede. Teriam café da manhã às 7h, treino às 8h, almoço às 12h,
1h de turno livre, mais treino às 14h, jantar às 20h, toque de recolher às
21:30h.
Victória escutou um lamento
baixo ouvido da cela em frente. Era a única que não tinha uma porta de grade.
No lugar havia uma porta grossa e branca, com uma janelinha de vidro sem
aberturas. Caleb subiu na ponta dos dedos para espiar e viu uma garota de
cabelos compridos e bagunçados ajoelhada no canto de um quarto acolchoado
imensamente branco. A garota tampava o rosto com os braços envoltos numa camisa
que tinha as mangas demasiadamente grandes e desproporcionais. A menina chorava
baixinho, balançando o corpo pra frente e pra trás.
-O que tem
aí dentro?_perguntou Victória.
-Uma menina.
E parece que ela não está muito bem._Caleb olhava triste para a garotinha do
lado de fora da cela.
-Oh. Oi, sou
Victória! E você?
-Caleb. Você
veio junto comigo, né?! Muito prazer. _ Estendeu a mão para a menininha, que
correspondeu o cumprimento com um sorriso doce.
O dia já havia raiado. Tomaram
café da manhã e foram direcionados aos treinos. Caleb era forçado a criar
campos de força para impedir de ser atingido por bolas de borracha macia.
Conseguiu fazer acontecer umas 2 ou 3 vezes entre as 76 tentativas. Victória
tentava criar as coisas que os treinadores mostravam, mas misturava alhos e
bugalhos e criava nada com nada (saiu um macaco com cara de tucano quando tentou
criar uma faca). Terminaram o almoço esgotados e foram levados ao pátio para a
hora livre. Sentaram na sombra de uma árvore, tentando descansar até o próximo
treino quando Caleb cutucou Victória. A menina da cela em frete andava lenta e
cabisbaixa pelo pátio. As longas mangas brancas da camisa arrastando pelo chão.
O cabelo repicado balançava com o vento, revelando olhos cansados e com
olheiras profundas. Era alta, não devia ter mais que 12 anos, os olhos e
cabelos castanho-avermelhados, a pele morena. Olhou de canto de olho para a
dupla que a encarava e continuou caminhando vagarosamente em direção ao nada.
Sentiu um puxão na manga da camisa e olhou cansada na direção de uma Victória
segurando, sorridente, sua blusa.
-Oi, sou a
Victória e eu moro na frente do seu quarto. Quem é você?
-Victória,
não seja intrometida._Caleb vinha puxando a garotinha. -Me desculpe o incomodo.
-...... Não
foi um incomodo. Muito prazer Victória, sou Artemis. _Sua voz estava cansada e
era cambaleante, variando entre o fino e o grosso muitas vezes. -E você seria o
garoto que ficou me espiando ontem....
Caleb corou
de leve, coçando a nuca se graça. _Me..me desculpe... pensei ter ouvido você
chorar...errrm... não te vi no treino da manhã....
-Eu quase
nunca treino com os outros. .....Eles dizem que eu sou "instável" e
tenho de treinar sozinha...
-O que você
consegue fazer? Eu posso fazer bichinhos e coisas malucas só de pensar!
-Que
legal.... eu... eu "altero e manipulo as probabilidades e posso ver além
do amanhã!" Pelo menos é o que eles me falam....
-Uaaaaaauuu!_Victória
não sabia muito bem o que era aquilo, mas pra ela pareceu ser uma coisa
legal.-O Caleb faz escudinho de ar!
-Não é um
"escudinho de ar"! Eu faço campos de força!
-Deu no
mesmo!_disse uma Artemis risonha. -Haahahahaha...me desculpe....
Passaram a hora livre juntos, rindo
de algumas coisas, conversando, contado sobre a vida que tinham fora do
"Santuário" até o sinal de aviso soar levando todos para o treino da
tarde. Artemis foi guiada por dois guardas até uma ala interna, enquanto o
restante dos "Abençoados" era levado para o pátio de treinamento. A
garota acenou e deu um sorriso tímido para os novos companheiros e rumou para
sua imensidão branca.
-Ei,
Caleb... toma cuidado com essa menina. Me disseram que ela é perigosa e
estranha. Que ela é tipo uma bruxa, que pode fazer coisas terríveis e até
destruir o mundo!
-Júlio...
não é possível que aquela maltrapilha conseguiria destruir o mundo. Devem estar
exagerando só porque ela é diferente.
No complexo de pesquisa, Artemis
fora colocada no centro de uma sala muito grande e extremamente iluminada e
branca. Uma voz sem boca ecoou pelo recinto:
-Está
preparada? Ao meu sinal... em 3, 2, 1.... COMECEM!
De repente, ao mero sinal da
voz, comportas abriram-se nos quatro cantos da sala revelando robôs armados que
avançavam ruidosos para a menina no centro da sala. Artemis nem ao menos
piscou. Pulou para o alto, o cabelo esvoaçando junto as roupas enquanto
gesticulava os dedos de forma rápida. De imediato, formas coloridas saíram da
mão da garota e percorreram o ambiente cortando e explodindo as máquinas.
Pairou no ar como se fosse bolha de sabão, os dedos retesados, os olhos
escancarados emitindo um brilho roxo. Mais robôs apareceram do chão, paredes e
teto atacando a menina. Apontou os dedos para algumas máquinas e as mesmas
transformaram-se em borboletas pretas, levitado pelo ar de forma inofensiva.
Levantou os braços de forma rápida, fazendo com que aparecesse do chão inúmeras
estalagmites
de gelo e pedra, perfurando as máquinas restantes. Pousou pesada entre as
formações rochosas. Piscou um par de vezes. Olhos castanhos.
-Parece que
tem conseguido administrar bem os seus dons, minha cara Artemis. _ A voz sem
boca voltou a falar. - Vamos testar a segunda parte do treino. Refaça a sala!
Artemis levitou pelo ambiente,
sacudindo as mãos, fazendo a sala voltar ao que era no começo do teste. Antes
de tocar o chão imaculado, um zumbido alto e irritante preencheu o ar fazendo a
menina tapar os ouvidos com força e bater com o corpo n chão, gritando de dor e
agonia. Risadas ecoavam no meio do zumbido ensurdecedor e a sala parecia girar.
Os robôs voltaram a sair dos cantos da sala, investindo contra a garota que
quicou pela sala no impacto com o primeiro deles. Jatos de água gelado eram
atirados na jovem, mãos metálicas surravam o corpo inerte como se ela fosse uma
boneca de pano.
-Vamos
Artemis. Não quer terminar como Gabrielle, não é mesmo?
Ao simples mencionar desse nome,
os olhos da menina estatelaram num brilho vermelho, o corpo levantado, as mãos
gesticulando rápido e os robôs pifando e derretendo. Caminhou devagar na
direção de uma das paredes, fazendo o restante da sala explodir. Seus olhos
eram pura vingança e ódio. O teto do complexo explodiu escandaloso, os ventos
dançavam furiosos pela abertura formando um redemoinho de poeira e fumaça. O
corpo caiu quando foi atingido por 7 dardos tranquilizantes vindo dos snipers
de plantão. O complexo já estava sedo reerguido por 3 "Abençoados"
antes mesmo da menina ser retirada em direção a ala hospitalar.
~ Continua