Uma segunda-feira cansada
acabara de começar. Seus pais saíram de casa para trabalhar enquanto a garota
ficou sentada no sofá vendo TV. Estar de férias era a maior das maiores
maravilhas para ela. Não precisaria acordar cedo, usar o uniforme cinza e fora
de moda, estudar aritmética ou dar um tedioso “bom dia” para a menina que ela
odiava em quase-segredo. Mas lá estava ela, 7h da manhã, acordada, com sono,
cansada, com raiva.
Seus pais fizeram milhares de
recomendações antes de saírem. Para que ele descansasse, que tentasse dormir,
que tentasse esquecer os pesadelos, comesse no horário e tentasse fazer alguma
coisa divertida para evitar pensar no que aconteceu na noite anterior. Ela
concordava com tudo, tentando sorrir o máximo que podia para não preocupar os
pais. Mas ela sabia que não iria conseguir esquecer o que tinha acontecido.
Terminou o cereal enquanto
assistia alguma coisa na TV que ela não estava prestando atenção, subiu,
escovou os dentes e admirou a cara abatida e cansada, as olheiras pesadas de
sono, os cantos dos olhos avermelhados, o cabelo bagunçado. Olhou desejosa pra
cama. Andou dois passos em direção a ela e parou. Os olhos arregalados. Um
flash da noite anterior. Um corpo travado. Desistiu de deitar. Desceu as
escadas, passou pela cozinha, pegou um copo d’água e sentou na cadeira fofa da
varanda. Um veto tímido passava pelo quintal verde. Bebericou a água, colocou o
copo na mesinha. Piscou. O sono não teve clemência da garota e levou-a para
dormir. A cabeça cansada e o corpo fatigado dormiram agradecidos pelos
primeiros 20 minutos. E os sonhos começaram.
No sonho, a menina voava por um
céu cor de rosa com nuvens claras. Bolinhos recheados planavam acima de uma
floresta de cogumelos. O sol estava quentinho e gostoso. E, na sua frente, uma
manchinha preta se aproximava e crescia. Apertou os olhos para ver melhor e viu
uma boca. A mesma boca que ela conhecia em todas as noites escarnava um sorriso
doentio. E o céu tempestuou, os bolinhos sumiram e o sol se foi. Tudo era
trevas, era frio, eram raios e trovões e barulhos macabros. A boca sem corpo
ria amaldiçoada enquanto a menina despencava do céu negro e mergulhava sem
controle numa floresta de braços negros com unhas compridas e afiadas. Acordou
um segundo antes da primeira mão agarrar seu pescoço; arfando, os olhos
arregalados, a testa suada, o coração acelerado. Chorou baixinho, praguejando
pela maldição que tinha na sua vida. Uma eterna acordada.
A cabeça doía, mas não podia se
render ao sono. Não poderia suportar ver aquela boca novamente. Tomou um banho
demorado, gelado para terminar de acordar o corpo. A água fria escorria pelos
cabelos, os pelos da nuca arrepiados, o furor momentâneo da mudança brusca de
temperatura. Shampoo, sabonete, bucha,quatro mãos. Saltou depressa pro canto do
box ao ver as mãos negras emergirem da água empoçada no chão e já não estava
mais lá. Estava sozinha agachada no chão ouvindo o murmúrio das gotas vindas do
chuveiro.
Estava louca. Só podia. Ou
estava ficando. Não podia dormir e agora começava a ver o sonho enquanto estava
acordada. Vestiu depressa a calça e o moletom roxo, calçou os tênis e correu
pro andar de baixo. Saiu de casa. andar pelo parque ou pelo shopping seria mais
seguro do que ficar em casa sozinha e enlouquecida.
"Cora...." um sussurro ao longe.
Virou-se para procurar quem era. A rua estava vazia, apenas com folhas secas
desfilando graciosas em suas vestes alaranjadas pelo passeio. "Cora..." Mais um silvo. "CORA!" Agora mais perto, mas
ainda assim um sussurro. Sacudiu a cabeça e deixou a voz sem boca para trás e
foi em direção ao shopping. Fones de ouvido, música alta, "She bop"
tocando, óculos escuros. "Cora..."
Chegou ao shopping sem maiores
problemas. Nenhuma voz, nenhum chamado, nenhuma mão. Percorreu lentamente os
corredores do primeiro piso olhando as vitrines coloridas. Roupas, vestidos,
bolsas, sapatos, livros, brinquedos, guloseimas. Rendeu-se a um bom-bocado com
suco de frutas e saiu alegre com um milk-shake enorme nas mãos. Perambulou pelo
segundo piso, mais cores, mais vitrines. Parou de frente a uma vitrine com
vestidos pretos de festa, já imaginando se poderia usar algo mais ousado para a
festa de aniversário. O vestido era decotado, batendo acima dos joelhos, com a
saia ondulante. E o milk-shake caiu num baque surdo e molhado. O manequim
branco sorria um riso desgrenhado e manchado de negro. Os dentes retos e
disformes abertos como um cadáver maculado. a menina estava estática, as mãos e
o corpo tremendo, cabelos eriçados. Fechou os olhos com força. Abriu de supetão
e já não havia mais boca. Apenas a segurança gorducha do andar perguntando se
ela estava bem.
Voltou para casa. Novamente com
os cabelos ao vento, fones de ouvido, música no volume máximo, "Price
Tag" tocando, óculos escuros e um "Cora"
baixinho ao fundo. Chegou em casa, trancou as portas e janelas, largou o corpo
no sofá. O relógio da cozinha tiquetaqueava 12h. A testa levemente suada, a
pele mais branca que o normal. A cabeça latejava, os olhos resistiam o máximo
que podiam, mas era uma batalha já inútil. Dormiu.
Sonhou sonhos leves. Era uma princesa em uma torre encantada. O menino
bonitinho da sua sala vinha em um cavalo branco resgatá-la. O vestido roxo
escuro, uma fita preta no cabelo liso, um pedido de "Felizes para
Sempre". Tudo perfeito. E de repente ela era uma bruxa poderosa e
respeitada. Seu manto multicolorido percorrendo sua sala de feitiços. Seu
unicórnio perolado cavalgado o quintal gigantesco. Magias, formas, encantos.
Tudo perfeito. Tudo mudou de novo. Era Chapeuzinho Vermelho, sozinha na
floresta encantada. Saltitou pelos campos floridos, pegou frutinhas para a vovó
e o arbusto agarrou seu braço com uma mão fininha feita de galhos. Gritou e se
debateu e caiu no chão. As conhecidas mãos negras corriam pelo chão formado de
sombras, serpenteando em direção a garota. Ela tentou escapar, mas o máximo que
corri não era suficiente. As mãos agarraram seu tornozelo com força e ela caiu
com a cara numa poça de lama escura. A boca maldita e agourenta ria um riso
diabólico acima dela, girando feito um carrossel de loucura. As mãos apertando
cada vez mais forte e arrastando-a para um buraco de fogo. Acordou de supetão
com a mãe chamando seu nome e sacudindo seu ombro de leve. Assustada, abraçou a
mãe e chorou. Era o que podia fazer no momento, enquanto a mãe a acarinhava e
dizia que aquilo tudo ia passar, que eram sonhos ruins e sonhos ruis sempre vão
embora. Eram 19h.
Levantou e acompanhou a mãe até
a cozinha. Sua barriga roncara no colo da mãe e lembrou que não tinha comido
muita coisa durante o dia. Lanchou com a mãe acompanhadas de grandes goladas de
refrigerante. Coçou a perna e percebeu que tinha um inchaço leve. Olhou e viu,
para seu horror, a forma de uma das mãos negras estampava seu tornozelo.
~ Continua
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