segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

~ Cora, parte 2


                Uma segunda-feira cansada acabara de começar. Seus pais saíram de casa para trabalhar enquanto a garota ficou sentada no sofá vendo TV. Estar de férias era a maior das maiores maravilhas para ela. Não precisaria acordar cedo, usar o uniforme cinza e fora de moda, estudar aritmética ou dar um tedioso “bom dia” para a menina que ela odiava em quase-segredo. Mas lá estava ela, 7h da manhã, acordada, com sono, cansada, com raiva.
                Seus pais fizeram milhares de recomendações antes de saírem. Para que ele descansasse, que tentasse dormir, que tentasse esquecer os pesadelos, comesse no horário e tentasse fazer alguma coisa divertida para evitar pensar no que aconteceu na noite anterior. Ela concordava com tudo, tentando sorrir o máximo que podia para não preocupar os pais. Mas ela sabia que não iria conseguir esquecer o que tinha acontecido.
                Terminou o cereal enquanto assistia alguma coisa na TV que ela não estava prestando atenção, subiu, escovou os dentes e admirou a cara abatida e cansada, as olheiras pesadas de sono, os cantos dos olhos avermelhados, o cabelo bagunçado. Olhou desejosa pra cama. Andou dois passos em direção a ela e parou. Os olhos arregalados. Um flash da noite anterior. Um corpo travado. Desistiu de deitar. Desceu as escadas, passou pela cozinha, pegou um copo d’água e sentou na cadeira fofa da varanda. Um veto tímido passava pelo quintal verde. Bebericou a água, colocou o copo na mesinha. Piscou. O sono não teve clemência da garota e levou-a para dormir. A cabeça cansada e o corpo fatigado dormiram agradecidos pelos primeiros 20 minutos. E os sonhos começaram.
                No sonho, a menina voava por um céu cor de rosa com nuvens claras. Bolinhos recheados planavam acima de uma floresta de cogumelos. O sol estava quentinho e gostoso. E, na sua frente, uma manchinha preta se aproximava e crescia. Apertou os olhos para ver melhor e viu uma boca. A mesma boca que ela conhecia em todas as noites escarnava um sorriso doentio. E o céu tempestuou, os bolinhos sumiram e o sol se foi. Tudo era trevas, era frio, eram raios e trovões e barulhos macabros. A boca sem corpo ria amaldiçoada enquanto a menina despencava do céu negro e mergulhava sem controle numa floresta de braços negros com unhas compridas e afiadas. Acordou um segundo antes da primeira mão agarrar seu pescoço; arfando, os olhos arregalados, a testa suada, o coração acelerado. Chorou baixinho, praguejando pela maldição que tinha na sua vida. Uma eterna acordada.
                A cabeça doía, mas não podia se render ao sono. Não poderia suportar ver aquela boca novamente. Tomou um banho demorado, gelado para terminar de acordar o corpo. A água fria escorria pelos cabelos, os pelos da nuca arrepiados, o furor momentâneo da mudança brusca de temperatura. Shampoo, sabonete, bucha,quatro mãos. Saltou depressa pro canto do box ao ver as mãos negras emergirem da água empoçada no chão e já não estava mais lá. Estava sozinha agachada no chão ouvindo o murmúrio das gotas vindas do chuveiro.
                Estava louca. Só podia. Ou estava ficando. Não podia dormir e agora começava a ver o sonho enquanto estava acordada. Vestiu depressa a calça e o moletom roxo, calçou os tênis e correu pro andar de baixo. Saiu de casa. andar pelo parque ou pelo shopping seria mais seguro do que ficar em casa sozinha e enlouquecida.
"Cora...." um sussurro ao longe. Virou-se para procurar quem era. A rua estava vazia, apenas com folhas secas desfilando graciosas em suas vestes alaranjadas pelo passeio. "Cora..." Mais um silvo. "CORA!" Agora mais perto, mas ainda assim um sussurro. Sacudiu a cabeça e deixou a voz sem boca para trás e foi em direção ao shopping. Fones de ouvido, música alta, "She bop" tocando, óculos escuros. "Cora..."
                Chegou ao shopping sem maiores problemas. Nenhuma voz, nenhum chamado, nenhuma mão. Percorreu lentamente os corredores do primeiro piso olhando as vitrines coloridas. Roupas, vestidos, bolsas, sapatos, livros, brinquedos, guloseimas. Rendeu-se a um bom-bocado com suco de frutas e saiu alegre com um milk-shake enorme nas mãos. Perambulou pelo segundo piso, mais cores, mais vitrines. Parou de frente a uma vitrine com vestidos pretos de festa, já imaginando se poderia usar algo mais ousado para a festa de aniversário. O vestido era decotado, batendo acima dos joelhos, com a saia ondulante. E o milk-shake caiu num baque surdo e molhado. O manequim branco sorria um riso desgrenhado e manchado de negro. Os dentes retos e disformes abertos como um cadáver maculado. a menina estava estática, as mãos e o corpo tremendo, cabelos eriçados. Fechou os olhos com força. Abriu de supetão e já não havia mais boca. Apenas a segurança gorducha do andar perguntando se ela estava bem.
                Voltou para casa. Novamente com os cabelos ao vento, fones de ouvido, música no volume máximo, "Price Tag" tocando, óculos escuros e um "Cora" baixinho ao fundo. Chegou em casa, trancou as portas e janelas, largou o corpo no sofá. O relógio da cozinha tiquetaqueava 12h. A testa levemente suada, a pele mais branca que o normal. A cabeça latejava, os olhos resistiam o máximo que podiam, mas era uma batalha já inútil. Dormiu.
Sonhou sonhos leves. Era uma princesa em uma torre encantada. O menino bonitinho da sua sala vinha em um cavalo branco resgatá-la. O vestido roxo escuro, uma fita preta no cabelo liso, um pedido de "Felizes para Sempre". Tudo perfeito. E de repente ela era uma bruxa poderosa e respeitada. Seu manto multicolorido percorrendo sua sala de feitiços. Seu unicórnio perolado cavalgado o quintal gigantesco. Magias, formas, encantos. Tudo perfeito. Tudo mudou de novo. Era Chapeuzinho Vermelho, sozinha na floresta encantada. Saltitou pelos campos floridos, pegou frutinhas para a vovó e o arbusto agarrou seu braço com uma mão fininha feita de galhos. Gritou e se debateu e caiu no chão. As conhecidas mãos negras corriam pelo chão formado de sombras, serpenteando em direção a garota. Ela tentou escapar, mas o máximo que corri não era suficiente. As mãos agarraram seu tornozelo com força e ela caiu com a cara numa poça de lama escura. A boca maldita e agourenta ria um riso diabólico acima dela, girando feito um carrossel de loucura. As mãos apertando cada vez mais forte e arrastando-a para um buraco de fogo. Acordou de supetão com a mãe chamando seu nome e sacudindo seu ombro de leve. Assustada, abraçou a mãe e chorou. Era o que podia fazer no momento, enquanto a mãe a acarinhava e dizia que aquilo tudo ia passar, que eram sonhos ruins e sonhos ruis sempre vão embora. Eram 19h.
                Levantou e acompanhou a mãe até a cozinha. Sua barriga roncara no colo da mãe e lembrou que não tinha comido muita coisa durante o dia. Lanchou com a mãe acompanhadas de grandes goladas de refrigerante. Coçou a perna e percebeu que tinha um inchaço leve. Olhou e viu, para seu horror, a forma de uma das mãos negras estampava seu tornozelo.
 ~ Continua

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Blogroll