Era uma vez um pedaço de madeira. E
era uma vez um garoto carpinteiro.
Era uma vez uma casa de madeira. Era
uma vez muitas coisas de madeira. Era uma vez uma família. E era uma manhã
chuvosa. Um pequeno menino carpinteiro
observava o pai talhar num grande pedaço de madeira um relógio cuco encomendado
pela duquesa. Já tinha aprendido o ofício com o pai, mas não se cansava de
observar aquelas mãos grossas e ágeis criando, a partir de pedaços toscos
tirados uma árvore, objetos tão delicados e perfeitos. Para o menino, aquela
era uma das melhores coisas que se podia observar: ver o pai transformar a
matéria prima nodosa em algo esplendorosamente magnífico e cheio de
significado. Nem ao menos se atrevia a piscar.
A casa era simples, mas muito bem
cuidada. Tinha uma grande sala, com uma mesona bem no centro, relógios
adornando as paredes e prateleiras. Alguns quadros recheados de rostos
sorridentes estavam pregados junto às paredes, servindo de vizinhos aos relógios.
Havia um grande tapete cobrindo boa parte da sala, entregando à madeira do chão
uma vastidão de cores e padrões tecidos a mão pela falecida esposa. Logo
adiante ficava a cozinha e a copa, onde se podia ver outra mesa e 6 cadeiras
adornando-a. Um vaso branco com flores do campo enfeitava o centro da távola
familiar e 2 bibelôs de madeiras ao lado do jarro completavam a cena. O quarto
era divido entre pai e filho, com duas camas espaçosas e confortáveis. A ala
adjacente servia de carpintaria e fazia as vezes de depósito para os produtos
fabricados.
O menino sentou em um banquinho e
começou a trabalhar. Pegou um pedaço pequeno de madeira e talhou uma mulher com
um vestido longo e uma trança descendo pela nuca e serpenteando até a cintura.
Não que chegasse ao menos perto da perfeição do carpinteiro mais velho, mas era
uma boa obra. Gepeto gostava de tentar imitar o pai. Desde sempre tentou
aprender o ofício da família e já conseguia, sozinho, fazer algumas peças e até
alguns relógios simples. Tudo ali havia sido feito pela família. Desde a casa
até os talheres. Tudo de madeira. Tudo artesanal. Tudo repleto deles.
Eustáquio era o um dos melhores e mais
respeitados carpinteiros do reino. Pessoas vinham de longe para encomendar suas
peças, inclusive a realeza. Mesas, tábuas, relógios, adornos e, vez ou outra,
bonecos e marionetes. Ensinava tudo para o pequeno Gepeto, passando o legado da
família adiante e gabando-se de ver o filho seguir seus passos tão
habilidosamente. Gepeto conseguiria fazer tudo o que ele fazia e até mais. O
garoto tinha dedos compridos e ágeis, conseguia talhar rápido com cortes
precisos. Um talento nato. De família.
Certo dia Gepetto resolveu colocar em
prática e em teste tudo que seu pai havia lhe ensinado. Foi até os fundos da
casa, pegou um grande pedaço de madeira e começou a entalhar uma marionete. Seria
um desafio, visto que o tronco era praticamente da altura do menino e ele
sempre esculpira em pedaços que nem chegavam perto da sua cintura ou cabiam na
palma da mão. Criou primeiro o corpo. Fez os braços, as pernas, o tronco,
articulações. E, com isso, o pedaço de madeira ia ganhando forma. Já estava
praticamente montado: encaixou as partes, colocou as pequenas roldanas, enlaçou
as presilhas que serviriam para os fios e fez os detalhes da roupa. Uma camisa,
um macacãozinho, dois botões. Os sapatos já estavam prontos e só faltava
calça-los nos pés de madeira. Agora estava entalhando a cabeça. A fez redonda,
com pequeninas orelhas nas laterais. Almoçou rápido para voltar ao trabalho
depressa. As mãos pequenas estavam cheias de pequenos cortes e começando a
calejar. Mas estava animado com o que estava produzindo. Pintou as roupas,
luvas, um risco de lábio sorridente e grandes olhos castanhos, abertos,
atentos. A marionete seria Pinocchio, seu novo melhor amigo e companheiro
inseparável.
Já estava quase terminando. Encaixou a
cabeça no topo do corpo já pintado, pregou nas articulações e testou os
movimentos. Iria deixar o boneco junto às outras marionetes no galpão,
esperando a tinta secar para poder colocar os fios e começar a controlar seus
movimentos. Estava tudo indo bem. Ouviu o pai chamando para o jantar. Foi até a
sala, deixando a marionete secando sobre a grande mesa de trabalho. Gepeto foi
dormir cansado pelo dia de trabalho, mas feliz por ter feito o boneco. A
marionete já estava seca e com as cordas a postos. No outro dia seria testada e
eles poderiam, finalmente, se tornar melhores amigos e viverem aventuras
maravilhosas.
Durante a noite, uma luz azulada
surgiu no galpão. Começou tímida, serena, fraquejando. Aos poucos, tornou-se um
clarão azulado, brilhando raios de luz e estrelas por todo o local. Uma Fada
Azul surgiu em meio aos tom celeste, pairando sob o chão. Era uma belíssima
mulher: jovem, com cabelos loiros e lisos que desciam em cascatas de fios até
abaixo dos ombros; acima da imensidão de fios dourados repousava uma tiara de
cristal e pedrinhas azuis cintilantes. Seu vestido era de seda pura e brilhava
tênue uma claridade azulada, acompanhando o movimento gracioso de duas grandes
asas transparentes e cintilantes, com algumas formas prateadas adornando o
centro das mesmas.
A fada levitou elegante até a mesa dos
carpinteiros. Olhou bondosa para a marionete de Gepeto e sorriu. Tocou a
marionete recém-construída com sua varinha condão e disse:
_Querido Pinocchio, dou-te agora o dom
da vida. Seja bom e virtuoso, não mintas e obedeças aos mais velhos. Se assim o
fizer, tornar-te-ei um menino de verdade. – Girou o topo da cabeça do boneco de
pau com a varinha de condão, fazendo com que o boneco piscasse um par de vezes.
Quando o boneco começou a movimentar os dedos das mãos, a fada se foi num
clarão, desaparecendo num instante.
Depois de ser tocado pela magia da
fada, o menino de pau começou a mexer os dedos, os braços, mãos, pernas e pés.
A única coisa que não se movia era a boca pintada, estampando eternamente um
sorriso fino que preenchia, num risco, a face de madeira. Girou a cabeça,
piscando os olhos, e mirou o chão. Pulou desastrado e caiu esparramado no chão.
Chacoalhou o corpo de pau e caminhou meio cambaleante até o interior da casa,
com os fios sendo arrastados pelo chão e o rosto sempre sorridente, os olhos
brilhantes na penumbra da casa.
Enquanto caminhava trôpego pelo chão revestido
pelo tapete colorido, Pinocchio olhava os relógios, as molduras, os móveis de
madeira. O rosto de madeira com seu sorriso eterno mirava cada detalhe da casa.
Piscou os olhos brilhantes e adentrou o quarto dos carpinteiros e ficou
observando os dois humanos adormecidos, com o mesmo sorriso no rosto
amadeirado. As horas passaram devagar. O menino acordou sonolento no meio da
madrugada, sentindo um leve peso nas pernas. Ao olhar mais atentamente percebeu
que suas pernas e braços estavam amarrados por muitos fios e presos na cama. Ao
lado, seu pai amordaçado por um lenço tentava desesperadamente escapar dos fios
que também o atavam à velha cama.
Caminhando em direção ao carpinteiro
mais velho, uma marionete sorridente vinha desfilando num passo falho e sem
muita coordenação com uma lâmina de barbear nas mãos. O menino de pau olhou
contente para o velho senhor que o olhava apavorado e suando frio. Subiu na
cama e colocou-se sobre o peito do velho senhor e mirou o rosto levemente
enrugado. O rosto de madeira estampando o mesmo sorriso fino e o rosto de carne
estampando o horror em cada centímetro de pele. A lâmina cortou precisa e
bailou filetes grossos de um líquido vermelho pelo pescoço do pobre senhor. Observou
um pouco o humano azar um rio vermelho. Virou a cabeça oca para um Gepetto
assustado que gritava desesperado.
Pinocchio pulou infantil para o chão e
deste para a cama do pequenino carpinteiro. Acariciou o rosto banhado em
lágrimas, a cabeça de madeira caindo leve para um lado, como se admirasse o
garoto. O sorriso continuava estampado no boneco. E lâmina fez seu caminho mais
uma fez, ceifando a vida do jovem e levando-a num filete grosso e vermelho. Ficou
ali observando um pouco. Desceu da cama e percorreu o caminho até a sala,
jogando os dois lampiões acesos no chão, produzindo um tilintar de vidros
estilhaçados, de ferro contra a madeira do chão e um barulho surdo das chamas
se espalhando rápidas pela casa. Correu para fora e atravessou a rua, enquanto
as chamas lambiam cada centímetro daquela casa de madeira, encerrando em fogo e
fumaça a história dos dois carpinteiros.
E, enquanto a noite findava e as
chamas cresciam, Pinocchio valsou pelas ruas com seus fios ao vento e um eterno
sorriso nos lábios. Parou sob o umbral de uma porta e caiu estático. Naquela
manhã, logo após o leiteiro passar, uma menina de tranças grossas e castanhas
deitava o boneco de pau na cama e batia palmas felizes por ter um novo
brinquedo. Sentou na frente do boneco e cantou melodias infantis e canções de
roda, girando com o boneco pelo quarto. Quando o dia se extinguiu e a noite já
dominava há muito tempo o topo dos céus, um grito agudo percorreu a cidade
silenciosa, uma casa pegou fogo e uma menininha nunca mais cantou.
O menino de pau já estava caído,
sorridente, escorado na porta vizinha, enquanto seus olhos de tinta reluziam o
brilho vermelho da fera de fogo que tragava a casa da esquina, consumindo com
as chamas dois pais eternamente adormecidos e uma figura pequena de tranças
grossas que gotejava na cama fofa.