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Artemis. O que você vê?
...
Um
novo dia de treinamento começara. Victória estava no Campo 4 criando mais e
mais coisas. A menina ia melhorando a olhos vistos e já conseguia criar, com
exatidão, boa parte das coisas que os instrutores mandavam. Selena, a
instrutora-geral, dizia que se Victória conseguisse controlar seus poderes ela
seria de grande valia e teria um poder incrível nas mãos. Caleb treinava no
Campo 7, onde era colocado novamente sob a mira de uma atiradora de bolinhas. O
campo de força do garoto já estava mais forte e ele conseguia se proteger de
todas as bolinhas de pano e de boa parte das bolinhas de plástico endurecido.
Selena já estava preparando um novo treinamento para dar início assim que Caleb
concluí-se aquele nível. Faria o garoto criar múltiplos escudos e depois
fazê-lo criar campos de força à distância.
Já
tinha pouco mais de um ano que ambos estavam no "Santuário" e suas
habilidades já estavam muito mais maduras e disciplinadas. Encontravam-se todos
os dias antes dos treinamentos e na hora dos intervalos. Artemis era a que eles
menos viam. Cada dia e cada semana eram diferentes: tinham vezes que a menina
participava dos intervalos junto com eles, outros ela não era vista o dia
inteiro, outros era dividido e ela aparecia em alguns intervalos e em outros
dias apenas na hora do almoço. Tinham casos em que ela ficava até 2 ou 3
semanas sem ser vista. Mas quando aparecia, sempre estampando a mesma cara
cansada e as olheiras profundas, dizia aos companheiros que estava em um novo
treinamento e por isso andava sem tempo para fazer os intervalos conjuntos e
sorria meio abatida.
No
ano anterior Artemis explodiu um dos complexos de teste. Ninguém sabia o porquê
nem o que realmente acontecera, apenas boatos ("A bruxa tentou
escapar!" ou "Ela perdeu o controle com um dos feitiços" ou
ainda "Os instrutores tiveram que salvá-la de um incêndio que ela mesma
provocou!"). Mas ninguém comentava absolutamente nada quando a garota se
juntava aos demais. Mas ela sabia que cochichavam a seu respeito e não dava
muita importância praquilo. Ela sabia a verdade. Sabia que havia sido levada ao
extremo durante o treinamento. E não podia acreditar que eles tinham usado
Gabrielle pra isso.
Gabrielle
era a meio-irmã de Artemis. Se conheceram quando tinham 5 anos e viveram juntas
desde então. Ambas eram "Abençoadas" e entraram juntas no
"Santuário": Gabrielle tinha o poder de curar as pessoas com apenas
um toque. Bastava que ela encostasse as mãos no corpo da pessoa para que o
ferimento se curasse por completo. Demorava um pouco, mas ela sempre conseguia.
Ela tinha um dom incrível e Artemis a amava. Ela era um pouco mais baixa que a
irmã mais velha, a pele era mais clara e os cabelos curtos e eriçados, que a
menina insistia em metê-los embaixo de uma boina, chapéu, touca ou tiara. Os
olhos eram pequenos e castanhos bem escuros, escondidos atrás das lentes
transparentes dos seus óculos.
As
meio-irmãs foram enviadas ao "Santuário" quando ainda tinham 9 anos.
Dormiam no mesmo quarto, treinavam juntas e passavam cada segundo de cada dia
juntas. Os treinamentos começaram bem devagar: Gabrielle tinha de curar
pequenos cortes feitos nos instrutores e Artemis precisava voar por entre arcos
e obstáculos no teto das salas de treinamento. Intensificaram os treinos a cada
mês. Depois de um ano Gabrielle já conseguia curar feridas maiores sem muito
esforço, algumas doenças e já começava a ter algum sucesso em regenerar partes
do corpo, enquanto Artemis já poderia criar e destruir praticamente tudo, já
voava com perfeição e suas previsões estavam mais certeiras.
Tudo
estava indo bem. Bom, pelo menos estavam vivas e eram bem tratadas. Mas as duas
viviam cansadas e dormiam antes mesmo de deitarem a cabeça no travesseiro.
Acordavam cedo e dormiam tarde. Tinham mais treinamentos que os demais e eram
pressionadas a fazer muito mais do que fizeram no dia anterior. E quando
completaram 2 anos de "Santuário" é que as coisas ficaram piores. Com
o avanço estupendo das meio-irmãs, os instrutores passaram a intensificar cada
vez mais rápido os treinamentos e os testes. Ambas já dominavam quase que por
completo os poderes. Em um dos testes, as garotas foram colocadas em uma sala
dividida ao meio por um grosso vidro transparente, cada uma em um lado. O teste
consistia em Gabrielle ser ferida e ter de se curar sem se tocar, enquanto
Artemis assistia tudo enquanto lutava com os robôs e instrutores. A cada 5
minutos a força de cada lado era aumentada, chegando ao ponto de Gabrielle ter
pequenas partes do corpo arrancadas e Artemis ter de prever cada movimento dos
adversários para conseguir escapar dos múltiplos ataques e atacar de volta.
Artemis
caiu com o ataque de um robô que veio do teto. A previsão chegara devagar
demais. Enquanto isso Gabrielle era surrada e cortada de diversas formas,
regenerando cada pedaço e corte q era feito, mas mais devagar que antes. Ambas
suavam frio e tinham os corpos cansados e doloridos. De repente os ataques
pararam. Ambas ficaram no chão, arfando cansadas. Gabrielle tentava curar um
corte profundo no braço esquerdo e Artemis tentava se levantar. Uma voz ecoou
pelo local, grave e profunda:
-Muito bom, meninas. Agora vamos
ver o que vocês podem fazer quando há mais coisas a serem arriscadas._Mãos metálicas
surgiram da parede e agarraram os braços e pernas da mais nova. -Artemis, sua
missão é salvar Gabrielle. Se você demorar demais, os membros da sua irmã serão
arrancados. Vamos começar?
Gabrielle
estava presa pelas garras de metal, cansada e ofegante. Mal conseguira curar o
último corte. Olhava para a irmã através do vidro grosso que as separava e
sorriu apática. Artemis se levantou com dificuldade. Fechou momentaneamente os
olhos enquanto os cabelos eram levantados por uma leve brisa. Concentrou-se ao
máximo. Quando gesticulou os dedos em direção à parede, sirenes muito agudas
foram acionadas, emitindo gritos e ruídos altos. Jatos de luz, clara e forte,
foram jogados em direções caóticas e giravam sem sentido pela sala. Artemis
caiu de joelhos tapando os ouvidos e gritando. Não conseguia se concentrar e
sua cabeça doía numa agonia profunda. Olhou para a irmã que também gritava de
dor, enquanto seus membros eram apertados e esticados pelas garras de metal.
Artemis via a meio-irmã se esforçando para que as feridas provocadas pelas mãos
metálicas se curassem, mas o resultado era quase nulo. Tentou mais uma vez se
levantar e estourar o vidro, mas o símbolo dourado que saiu de seus dedos
trêmulos conseguiu apenas trincar a parede.
Aquilo
durou apenas 2 segundos, mas Artemis sentiu como se tivesse demorado horas,
talvez dias: a perna direita de sua irmã havia sido arrancada do corpo,
enquanto rios de sangue brotavam da ferida aberta e a garota se contorcia de
dor num grito alto e agudo, tendo o rosto encharcado de sangue e lágrimas. Um
brilho vermelho. Tudo ficou escuro de
repente.
Artemis
acordou caída no chão frio da sala que estava destruída e chamuscada, com
marcas negras onde chamas haviam passado percorrendo todo o ambiente. As pontas
dos dedos estavam igualmente queimadas e a cabeça doía e pesava como nunca. Não
havia mais teto no lugar e o vidro grosso e forte jazia em cacos pela sala. O
lugar onde Gabrielle tinha ficado cativa das mãos metálicas estava vazio e
algumas manchas de sangue seco eram a única coisa que restara da garota. Um
homem em roupa militar e coturnos muito limpos se aproximou de Artemis, olhando
com desdém para a garota.
-Isso é o que acontece quando
não se consegue controlar as próprias habilidades. Graças a sua fraqueza e
descuido, Gabriele está morta. E não fomos nós que a matamos. Seu rompante de
fúria explodiu e dizimou tudo que havia nesta sala. Incluindo sua irmã. O que
você fez, Artemis? Tudo isso é culpa sua!
Não
podia acreditar naquelas palavras. Gabrielle estava morta? E ela tinha sido a
culpada? Não, não podia ser verdade. Artemis chorava baixo, meneando
negativamente a cabeça e murmurando “Não.. não... não...”, os olhos estatelados
como uma louca agourenta, os cabelos bagunçados, as lágrimas correndo livres
pelo rosto. Cada parte do seu corpo tremia. Nada em sua mente fazia sentido e
um profundo e desesperador vazio inundava seu ser. Artemis nunca mais foi a
mesma depois desse dia. Sonhos, pensamentos perturbados, um constante vazio,
uma constante solidão, um profundo desespero. E, por menos que ela soubesse,
mais poderosa. Mas continuava ali, treinando e enfrentando os testes,
imaginando se um dia conseguiria domar seus poderes com perfeição e conseguir,
de alguma maneira, trazer Gabrielle de volta a vida.
Artemis
sacudiu a cabeça, eliminando as memórias do passado de sua mente. Estava saindo
da sala de testes. Voltou ao presente, depois de ser inundada pelas memórias
sofridas. Continuou caminhando para fora do complexo. Suas roupas ainda eram as
mesmas: uma camisa de força branca com diversas fivelas e correias pretas que
ficavam soltas a maior parte do tempo arrastando as mangas compridas até quase
tocar o chão, uma calça igualmente branca e sapatos fechados. Atravessou as
sólidas portas de metal e saiu para o pátio banhado de sol. Percorreu os olhos
pelo local e encontrou a dupla que buscava: Caleb e Victória estavam sentados
debaixo da mesma árvore de sempre. Rompeu a distância entre eles, se juntado
aos amigos para rir um pouco e conversar. O restante do dia passou calmo e
sereno. Artemis ganhava um pouco mais de força sempre que via os únicos amigos
daquele “Santuário”. Ter esses breves momentos de normalidade em sua vida e
mente caóticas eram seu céu, seu paraíso, sua recompensa. Não podia desistir.
Em algum lugar, Gabrielle esperava para ser trazida de volta.
~ Continua
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