Snydersville era
uma aldeiazinha simples no interior da Pensilvânia. Não tinha muita coisa para
se fazer, mas todos os habitantes se conheciam e se ajudavam como podiam com
seus trabalhos e habilidades. O maior evento da cidade era um concurso de
tortas que acontecia em março para marcar o início da primavera e reunia toda a
cidade. Fora isso, somente as conversas na porta de casa, os encontros no único
bar e os frutos do bom e honesto trabalho da cidade.
Maggie era uma
garotinha miúda que morava no número 13 da James Street de Snydersville. Maggie
tinha 8 anos recém comemorados, era baixa, branca feito uma boneca de
porcelana. Os cabelos dourados estavam sempre caídos nas costas, com uma
fitinha de cetim vermelha amarrada num laço sobre a cabeça. Tinha olhos grandes
e verdes e algumas sardinhas tímidas pintavam o entorno do pequeno nariz da
menina.
O número 13 da
James Street era ocupado por uma casa de dois andares, feita de madeira e construída
pelo bisavô de Maggie. A casa era pintada de um creme claro, com janelas
grandes e azuis. A varanda tinha uma cobertura de um marrom forte e robusto e
era enfeitada por duas grandes e confortáveis poltronas, dispostas em cada um
dos lados de um sofá branco com almofadas coloridas. A propriedade tinha um
jardim modesto, com algumas rosas e um pessegueiro plantado entre as margaridas
na parte da frente, bem debaixo da janela do quarto de uma garotinha de fita no
cabelo. Era uma boa casa com bons habitantes. A família de Maggie era composta
pela mãe, Janne, que era costureira e uma versão envelhecida e sorridente da
filha; pelo pai, Thomas, um mecânico gorducho e risonho e pelos irmãos gêmeos,
Timmy e Dimmy, com seus 13 anos e suas travessuras de moleque. Uma boa família.
O calendário
vermelho em cima do fogão da cozinha simples e bem arrumada marcava 25 de
julho. Era verão e o vento morno que passava entre as casas e varria as ruas
com seu hálito quente bagunçava os cabelos cor de sol de Maggie. A garotinha
estava sentada no balanço da praça central da cidade, protegida pela sombra de
um poderoso carvalho e balançava pra frente e pra trás sacudindo, alegre, os
sapatinhos roxos encaixados em seus pés. Gostava de colocar a cabeça pra trás
enquanto balançava, imaginando que estava voando e era um passarinho, livre
pelos céus, amiga do ar e íntima das nuvens. Seus irmãos estavam brincando com
os amigos em um casarão abandonado, inventando poderes e lutas contra vilões e
suas máscaras de pano. Uma tarde agradável ao ar livre, uma sexta-feira pela
metade e um sol forte e laranja borrando o céu com seus raios de luz. Um dia
perfeito de verão.
Depois de muito
brincar e correr com os amigos, Maggie ouviu a mãe chamando pra voltar para
casa. Já eram 17h e era hora de tomar banho e se preparar para jantar.
Despediu-se dos colegas e correu ofegante até o batente da porta, estalando um
beijo suado no rosto animado da mãe, correndo em seguida em direção ao banheiro
que já a aguardava com uma grande banheira repleta de espuma e água fria. O dia
terminara com um jantar em família e uma torta de amoras de sobremesa servida
com sorvete de baunilha. Maggie foi dormir cansada e feliz. A noite começara e
em poucos minutos a casa estava afogada em um silêncio gostoso que se entrecortava
com os roncos do pai e as respirações pesadas da família.
Os primeiros
raios de sol invadiram o quarto de Maggie, passando sorrateiros pelas frestas
das janelas e começando a preencher o ambiente com o calor acolhedor da manhã.
A menina piscou algumas vezes, bocejando e espreguiçando-se. Lembrou que era
manhã de sábado e pulou da cama, correndo animada para o banheiro para se
lavar. Iria visitar a avó Samantha, em Phoenixville, e todos tomariam a famosa
limonada da Dona Sam juntos no quintal da casa grande e colorida que Maggie
tanto amava. Desceu a escadaria, já enfiada em um vestido amarelo de saia
rodada, sem mangas e com algumas rendinhas brancas contornando a peça. Calçava
um par de meias finas e brancas e os pés estavam escondidos em um sapatinho
amarelo vivo. Os cabelos estavam como de costume: soltos em cascata pelas
costas, com uma fitinha preta amarrada em laço encarapitada no topo da cabeça.
A família já estava quase toda pronta, faltando apenas a mãe que estava
calçando os sapatos de salto baixo. Os irmãos, igualmente animados, vestiam
macacões jeans com uma camisa listrada por baixo e já corriam para o carro,
seguidos por Maggie.
Partiram para a
casa da avó no carro da família. Era uma viagem rápida, não mais que uma hora e
eles chegariam bem antes do almoço. Foram animados, curtindo a brisa fresca e
cantando animadas músicas do coral da igreja, com risadas e muitas palmas.
Desembarcando na grande casa colorida com jardim florido, as crianças já
correndo para os braços da avó, sendo imediatamente cobertas de beijos e
abraços. Os pais desceram mais devagar e cumprimentaram a mulher com sorrisos e
mais abraços. Samantha já tinha seus 75 anos e as rugas já emolduravam o rosto
de sorrisos constantes. Estava trajando um vestido laranja florido e sapatos
confortáveis e beges, com uma florzinha de crochê junto ao botão. Entrou na
casa junto da família e pôs-se a conversar sobre a vida e perguntar dos netos.
Enquanto a avó
conversava com os pais e terminava de preparar o almoço, as crianças corriam
animadas pelos dois andares da espaçosa casa, hora se escondendo, hora
procurando os escondidos. Almoçaram animados e risonhos, contando novidades
para a avó e rindo das piadas do pai. O almoço poderia servir um batalhão da
infantaria: travessas de purê de batata com molho, bolo de carne, dois tipos de
arroz, vegetais no vapor, uma panela fumegante de feijão e um grande peru
assado com laranjas e abacaxi. E ainda tiveram o famoso pudim com creme que
Samantha fazia com grande maestria.
Depois de
almoçarem, a família arrumou a mesa e ajudaram a lavar as louças. Samantha
subiu com o casal para a sala do segundo andar para verem algumas fotos
enquanto os gêmeos já estavam no quintal subindo na árvore e brincado de
pirata. Maggie pediu dinheiro ao pai para ir até a venda da esquina comprar
limões para fazerem a limonada que tomariam à tarde, sentados nas
espreguiçadeiras que repousavam debaixo do flamboaiã do jardim. Correu porta
afora, animada, segurando firme o dinheiro que seu pai lhe dera.
Maggie atravessou
a rua deserta e começou sua caminhada pela calçada vazia até a quitanda da
esquina. Vinte minutos eram mais que o suficiente para ir até a vendinha, comprar
os limões e voltar para a avó. Pulou as linhas da calçada e saltitou para
dentro da quitanda, pedindo os limões para o atendente bigodudo. A menina riu
sozinha quando pensou o quanto ele parecia com a morsa que vira no filme que
passou na TV durante a semana. Pegou o saco com as frutas esverdeadas e saiu da
loja. Logo ao lado, crescendo pelas frestas da calçada, um ramo de flores silvestres
enfeitava a rua. Seria ótimo poder presentear Samantha com elas. Resolveu
colher algumas, escolhendo as cores que mais gostava. De repente tudo que
sentiu foi uma mão grande e grosseira tapar sua boca.
Tudo fora muito
rápido. Maggie estava abaixada com os cabelos caindo de lado, pegado algumas
flores quando sentiu a mão tapar-lhe a boca e arrastá-la para os fundos da
loja. Fora jogada sem muita delicadeza no chão frio e teve as pernas, que se
sacudiam com a fúria e o desespero de uma garotinha, presas por fortes pernas
grossas enfiadas em um jeans sujo e escuro. O vento soprava quente pela cidade
soltando os dentes-de-leão pelo ar. Uma menina jogada no chão com um corpo
truculento sobre o seu, o vestido sujo sendo levantado, a braguilha do jeans
escuro sendo aberta e as lágrimas derramadas dos olhinhos abertos e
amedrontados. Maggie sentia a mão áspera tapar-lhe a boca com os braços fortes
a pressionar seus ombros delicados. Uma de suas mãozinhas finas apertava o
braço do homem, enquanto a outra segurava com força o pacote com os limões.
Sentiu algo duro e quente tocando a parte interna de suas coxas finas. A dor. A
agonia. A dor. E então, tudo ficou escuro.
A menina abriu os
olhos com dificuldade. Estranhamente estava com sono e as pálpebras pesavam.
Não enxergou muito bem, apenas figuras e cores borradas. Mas podia ouvir os
pais gritando seu nome, a mãe chorando alto e os soluços graves do pai. Não
conseguia se mexer. Era estranho: o corpo pesava, as pernas doíam, as costas
latejavam, a cabeça girava e os braços estavam doloridos. O homem de jeans
escuro já havia partido muito antes da família chegar, levando consigo um
rastro de fumaça que saia do cigarro que tragava e uma inocência roubada, fruto
de seu último furto.
A ambulância
chegou com suas sirenes estridentes e suas luzes giratórias. A menina foi
levada para o hospital da cidade, junto com um casal de pais desesperados e
chorosos. Na calçada aos fundos da vendinha, um saco plástico com limões estava
esquecido, junto de uma fitinha preta e amarrotada. Ninguém tomou limonada
naquela tarde...
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