sábado, 23 de março de 2013

~ Pinocchio

Era uma vez um pedaço de madeira. E era uma vez um garoto carpinteiro.
        
Era uma vez uma casa de madeira. Era uma vez muitas coisas de madeira. Era uma vez uma família. E era uma manhã chuvosa.  Um pequeno menino carpinteiro observava o pai talhar num grande pedaço de madeira um relógio cuco encomendado pela duquesa. Já tinha aprendido o ofício com o pai, mas não se cansava de observar aquelas mãos grossas e ágeis criando, a partir de pedaços toscos tirados uma árvore, objetos tão delicados e perfeitos. Para o menino, aquela era uma das melhores coisas que se podia observar: ver o pai transformar a matéria prima nodosa em algo esplendorosamente magnífico e cheio de significado. Nem ao menos se atrevia a piscar.
A casa era simples, mas muito bem cuidada. Tinha uma grande sala, com uma mesona bem no centro, relógios adornando as paredes e prateleiras. Alguns quadros recheados de rostos sorridentes estavam pregados junto às paredes, servindo de vizinhos aos relógios. Havia um grande tapete cobrindo boa parte da sala, entregando à madeira do chão uma vastidão de cores e padrões tecidos a mão pela falecida esposa. Logo adiante ficava a cozinha e a copa, onde se podia ver outra mesa e 6 cadeiras adornando-a. Um vaso branco com flores do campo enfeitava o centro da távola familiar e 2 bibelôs de madeiras ao lado do jarro completavam a cena. O quarto era divido entre pai e filho, com duas camas espaçosas e confortáveis. A ala adjacente servia de carpintaria e fazia as vezes de depósito para os produtos fabricados.
O menino sentou em um banquinho e começou a trabalhar. Pegou um pedaço pequeno de madeira e talhou uma mulher com um vestido longo e uma trança descendo pela nuca e serpenteando até a cintura. Não que chegasse ao menos perto da perfeição do carpinteiro mais velho, mas era uma boa obra. Gepeto gostava de tentar imitar o pai. Desde sempre tentou aprender o ofício da família e já conseguia, sozinho, fazer algumas peças e até alguns relógios simples. Tudo ali havia sido feito pela família. Desde a casa até os talheres. Tudo de madeira. Tudo artesanal. Tudo repleto deles.
Eustáquio era o um dos melhores e mais respeitados carpinteiros do reino. Pessoas vinham de longe para encomendar suas peças, inclusive a realeza. Mesas, tábuas, relógios, adornos e, vez ou outra, bonecos e marionetes. Ensinava tudo para o pequeno Gepeto, passando o legado da família adiante e gabando-se de ver o filho seguir seus passos tão habilidosamente. Gepeto conseguiria fazer tudo o que ele fazia e até mais. O garoto tinha dedos compridos e ágeis, conseguia talhar rápido com cortes precisos. Um talento nato. De família.
Certo dia Gepetto resolveu colocar em prática e em teste tudo que seu pai havia lhe ensinado. Foi até os fundos da casa, pegou um grande pedaço de madeira e começou a entalhar uma marionete. Seria um desafio, visto que o tronco era praticamente da altura do menino e ele sempre esculpira em pedaços que nem chegavam perto da sua cintura ou cabiam na palma da mão. Criou primeiro o corpo. Fez os braços, as pernas, o tronco, articulações. E, com isso, o pedaço de madeira ia ganhando forma. Já estava praticamente montado: encaixou as partes, colocou as pequenas roldanas, enlaçou as presilhas que serviriam para os fios e fez os detalhes da roupa. Uma camisa, um macacãozinho, dois botões. Os sapatos já estavam prontos e só faltava calça-los nos pés de madeira. Agora estava entalhando a cabeça. A fez redonda, com pequeninas orelhas nas laterais. Almoçou rápido para voltar ao trabalho depressa. As mãos pequenas estavam cheias de pequenos cortes e começando a calejar. Mas estava animado com o que estava produzindo. Pintou as roupas, luvas, um risco de lábio sorridente e grandes olhos castanhos, abertos, atentos. A marionete seria Pinocchio, seu novo melhor amigo e companheiro inseparável.
Já estava quase terminando. Encaixou a cabeça no topo do corpo já pintado, pregou nas articulações e testou os movimentos. Iria deixar o boneco junto às outras marionetes no galpão, esperando a tinta secar para poder colocar os fios e começar a controlar seus movimentos. Estava tudo indo bem. Ouviu o pai chamando para o jantar. Foi até a sala, deixando a marionete secando sobre a grande mesa de trabalho. Gepeto foi dormir cansado pelo dia de trabalho, mas feliz por ter feito o boneco. A marionete já estava seca e com as cordas a postos. No outro dia seria testada e eles poderiam, finalmente, se tornar melhores amigos e viverem aventuras maravilhosas.
Durante a noite, uma luz azulada surgiu no galpão. Começou tímida, serena, fraquejando. Aos poucos, tornou-se um clarão azulado, brilhando raios de luz e estrelas por todo o local. Uma Fada Azul surgiu em meio aos tom celeste, pairando sob o chão. Era uma belíssima mulher: jovem, com cabelos loiros e lisos que desciam em cascatas de fios até abaixo dos ombros; acima da imensidão de fios dourados repousava uma tiara de cristal e pedrinhas azuis cintilantes. Seu vestido era de seda pura e brilhava tênue uma claridade azulada, acompanhando o movimento gracioso de duas grandes asas transparentes e cintilantes, com algumas formas prateadas adornando o centro das mesmas.
A fada levitou elegante até a mesa dos carpinteiros. Olhou bondosa para a marionete de Gepeto e sorriu. Tocou a marionete recém-construída com sua varinha condão e disse:
_Querido Pinocchio, dou-te agora o dom da vida. Seja bom e virtuoso, não mintas e obedeças aos mais velhos. Se assim o fizer, tornar-te-ei um menino de verdade. – Girou o topo da cabeça do boneco de pau com a varinha de condão, fazendo com que o boneco piscasse um par de vezes. Quando o boneco começou a movimentar os dedos das mãos, a fada se foi num clarão, desaparecendo num instante.
Depois de ser tocado pela magia da fada, o menino de pau começou a mexer os dedos, os braços, mãos, pernas e pés. A única coisa que não se movia era a boca pintada, estampando eternamente um sorriso fino que preenchia, num risco, a face de madeira. Girou a cabeça, piscando os olhos, e mirou o chão. Pulou desastrado e caiu esparramado no chão. Chacoalhou o corpo de pau e caminhou meio cambaleante até o interior da casa, com os fios sendo arrastados pelo chão e o rosto sempre sorridente, os olhos brilhantes na penumbra da casa.
Enquanto caminhava trôpego pelo chão revestido pelo tapete colorido, Pinocchio olhava os relógios, as molduras, os móveis de madeira. O rosto de madeira com seu sorriso eterno mirava cada detalhe da casa. Piscou os olhos brilhantes e adentrou o quarto dos carpinteiros e ficou observando os dois humanos adormecidos, com o mesmo sorriso no rosto amadeirado. As horas passaram devagar. O menino acordou sonolento no meio da madrugada, sentindo um leve peso nas pernas. Ao olhar mais atentamente percebeu que suas pernas e braços estavam amarrados por muitos fios e presos na cama. Ao lado, seu pai amordaçado por um lenço tentava desesperadamente escapar dos fios que também o atavam à velha cama.
Caminhando em direção ao carpinteiro mais velho, uma marionete sorridente vinha desfilando num passo falho e sem muita coordenação com uma lâmina de barbear nas mãos. O menino de pau olhou contente para o velho senhor que o olhava apavorado e suando frio. Subiu na cama e colocou-se sobre o peito do velho senhor e mirou o rosto levemente enrugado. O rosto de madeira estampando o mesmo sorriso fino e o rosto de carne estampando o horror em cada centímetro de pele. A lâmina cortou precisa e bailou filetes grossos de um líquido vermelho pelo pescoço do pobre senhor. Observou um pouco o humano azar um rio vermelho. Virou a cabeça oca para um Gepetto assustado que gritava desesperado.
Pinocchio pulou infantil para o chão e deste para a cama do pequenino carpinteiro. Acariciou o rosto banhado em lágrimas, a cabeça de madeira caindo leve para um lado, como se admirasse o garoto. O sorriso continuava estampado no boneco. E lâmina fez seu caminho mais uma fez, ceifando a vida do jovem e levando-a num filete grosso e vermelho. Ficou ali observando um pouco. Desceu da cama e percorreu o caminho até a sala, jogando os dois lampiões acesos no chão, produzindo um tilintar de vidros estilhaçados, de ferro contra a madeira do chão e um barulho surdo das chamas se espalhando rápidas pela casa. Correu para fora e atravessou a rua, enquanto as chamas lambiam cada centímetro daquela casa de madeira, encerrando em fogo e fumaça a história dos dois carpinteiros.
E, enquanto a noite findava e as chamas cresciam, Pinocchio valsou pelas ruas com seus fios ao vento e um eterno sorriso nos lábios. Parou sob o umbral de uma porta e caiu estático. Naquela manhã, logo após o leiteiro passar, uma menina de tranças grossas e castanhas deitava o boneco de pau na cama e batia palmas felizes por ter um novo brinquedo. Sentou na frente do boneco e cantou melodias infantis e canções de roda, girando com o boneco pelo quarto. Quando o dia se extinguiu e a noite já dominava há muito tempo o topo dos céus, um grito agudo percorreu a cidade silenciosa, uma casa pegou fogo e uma menininha nunca mais cantou.
O menino de pau já estava caído, sorridente, escorado na porta vizinha, enquanto seus olhos de tinta reluziam o brilho vermelho da fera de fogo que tragava a casa da esquina, consumindo com as chamas dois pais eternamente adormecidos e uma figura pequena de tranças grossas que gotejava na cama fofa.

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