segunda-feira, 11 de março de 2013

~ Cora, parte 3



Estava sentada naquela salinha absurdamente clara. As paredes eram um branco gritante com móveis marfim aqui e ali. Uma estante abarrotada de livros multicoloridos repousava no canto esquerdo da sala, ocupando toda a parede lateral. Do lado direito havia um estante com diversos porta-retratos com um tom de creme irritante, de onde duas crianças loiras e muito gordas sorriam meio abobadas para a menina. Havia um solitário pato cinza feito de gesso no canto da estante (o que Cora achou muito idiota) e duas pedrinhas de cristal no meio. Alguns livros e pastas de arquivo adornavam a parte inferior da estante, entulhando com sua cascata de papel as prateleiras finas e estreitas de madeira. Na sua frente, uma mesa clara com um tampo de vidro muito polido e limpo, onde se viam diversos papeis e canetas, uma xícara brancamente irritante, pastas, mais fotos das crianças gorduchas, uma planta meio morta e uma senhora gorda sentada numa poltrona amarelo claro. Tudo naquela sala era irritantemente claro demais.
A doutora Kátia W. Chapperton era uma senhora de uns 50 anos, acima do peso e sempre muito sorridente. Os cabelos eram castanho tingidos e ficavam sempre presos num rabo de cavalo encarapitado no topo da nuca, presos por um lacinho amarelo brilhante. Os olhos escuros eram adornados por um bique de pés de galinha e uma pinta preta e saliente com dois lindos pelos morava na ruga próxima à orelha esquerda. Cora observou a mulher gorducha, que estava enfiada em um vestido de seda lilás que certamente não era seu número, os pés atochados em um saltinho do mesmo tom e uma meia-calça clara e com um fio puxado e pensou logo em uma porca branca enfiada a contra gosto em um vestido de festa. Não queria estar ali, mas estava atrás de resposta tanto quanto seus pais.
Depois do escândalo que aprontou após ver a marca da mão nos seus tornozelos e da gritaria que arrumou quando seus pais insistiam que não havia nada naquele tornozelo fino, eles se encaminharam para a sala da psicóloga procurando alguma resposta, algum caminho a seguir, algum conselho ou quem sabe um remédio. Os pais conversaram durante longos e entediantes 45 minutos, enquanto a menina aguardava na sala de espera. Era uma salinha pequena e toda amarela, num tom que parecia sorvete de creme derretido. Alguns quadros de moldura branca pintavam aquelas paredes enjoativas aqui e ali, enquanto uma mesa e uma estante de livros serviam de fortaleza para a secretária magrela e de dentes brilhantes que ficava num tecla-tecla sem fim naquele computador branco e barulhento.
Quando finalmente deixou o mar amarelo, Cora entrou na sala mais irritante que já havia entrado. Precisou de alguns segundos e umas piscadas rápidas de olho para se acostumar a tanta claridade. Entrou, sentou-se na cadeira BRANCA, no meio daquela sala BRANCA, de frente pra mulher que mais parecia uma porquinha sorridente. Estava deveras irritada, queria ir embora, mas prometera aos pais que iria contar cada detalhe e responder cada pergunta para a senhora Chapperton. E assim ela fez. Respondeu sobre algum possível trauma, dialogou sobre os pesadelos constantes, pontuou as visões, esclareceu sobre as horas que passou acordada, nomeou as amigas e discursou sobre o dia-a-dia. A mulher apenas concordava, dava uma risadinha irritantemente estridente e anotava qualquer coisa num bloco de folhas e começava com mais perguntas que saiam sem fim por detrás daquela boca absurdamente sorridente. “Irritante!”
No final daquela hora (que Cora jurava de pés juntos que tinham sido pelo menos 6 longas horas), a psicóloga chamou os pais da menina e a tortura começou. Disse aos pais. e vez ou outra dirigia-se à menina, que aquilo não passava de estresse, que o cérebro e o subconsciente da garota apenas reagia aos impulsos sofridos pelo que ela via nos pesadelos, fazendo com que ela pensasse que aquilo era real, que não teria fim e que ela poderia ter criado um mundo de onde ela jamais sairia e que nunca poderia ser liberta. Cora ouvia tudo incrédula, enquanto os pais se agarravam naquelas palavras e meneavam com a cabeça a cada frase da mulher-porca. Saíram do oceano branco e amarelo com uma Cora encaminhada a uma terapeuta a cada 5 dias.
Em casa, jogou-se cansada na cama, tirando os sapatos com os pés e deixando-os onde caíram. Fechou os olhos e bufou. Não podia acreditar que ninguém vira a marca no seu tornozelo. Estava ali, como se uma mão de dedos muito finos tivesse apertado com força a carne e a pele branca, marcando uma praga vermelha e arroxeada contornando o tornozelo. Coçou de leve o lugar. Abriu os olhos e revirou os olhos, incrédula e debochada: o tornozelo estava ali, branco e virgem de qualquer marca, como sempre.
-É, realmente estou ficando louca..._murmurou a menina, enquanto tirava a blusa de frio azul com estrelas brancas, atirando-a em um canto qualquer. Afofou de leve os travesseiros e deitou derrotada. Fechou os olhos e mergulhou em um sono profundo e merecido. Já fazia quase um dia inteiro que ela nem ao menos cochilava. Começou com um leve relaxamento nos músculos, as pálpebras pesadas, o escuro tomando conta e o vazio na mente. Dormiu.
Ao abrir os olhos já era noite. Os ponteiros no relógio por cima da porta marcavam 22:37h e o quarto estava emergido em trevas. Bocejou espreguiçando-se e levantou da cama. Estava até um pouco contente por ter dormido por algumas horas e não ter sonhado com nada, por não ter nenhuma mão ossuda ou boca maldita visitando seus sonhos. Abriu a porta do quarto e foi recebida pela luz tímida que vinha do andar de baixo, onde o barulho do telejornal que o pai assistia na televisão e o tamborilar metálico dos potes e panelas na cozinha, onde provavelmente sua mãe orquestrava uma refeição, vinham lhe agraciar os ouvidos semidespertos. Arrastou os pés e pôs-se a caminhar escada abaixo.
Passou pela figura do pai, entretido em alguma notícia ruidosa e foi direto para a cozinha. A mãe estava de costas, cortando alguma coisa quando a menina abriu a geladeira e pegou a garrafa de leite. Ao virar, viu a mãe com os olhos lacrimosos e uma pilha de cebolas cortadas sobre a mesa. A mesma virou-se de novo, sorrindo sem graça e voltando ao trabalho.
-Dormiu bem, minha filha?_perguntou a mãe em meio aos golpes lentos e precisos da faca amolada. O cheiro forte do tempero sendo refogado no molho de tomate preenchia o ar, enquanto o barulho da TV retumbava baixo pela porta. A menina encheu um copo com o líquido branco e manchou-o com um pouco do marrom do achocolatado.
-Por incrível que pareça sim... não tive nenhum sonho ou pesadelo, só dormi._ Virou quase a metade do conteúdo do copo em alguns poucos goles e sentou-se na cadeira vermelha perto da bancada da cozinha. Mal colocou o copo no mármore frio e escuro e recuou num berro agudo. A mãe havia virado sorridente para a filha, os cabelos negros da franja caindo sob os olhos e as mãos negras e ossudas, finas feito garras estavam ocupando a ponta dos braços da mãe. O negrume que escorria dos pulsos subia em voltas lentas e já havia transformado mais da metade do braço na extensão negra, fina e endurecida que a garota tanto conhecia dos seus pesadelos. Correu para a sala topando com o pai de pé junto ao braço do sofá. Gritou novamente, já banhando as bochechas com lágrimas pesadas e salgadas: o rosto do pai jazia em um sorriso cortado e cheio de dentes pontiagudos, com um olho arredondado e sombrio vagando sozinho pela extensão do rosto disforme e repleto de ébano. Mãos firmes a agarraram pelas costas, enquanto o pescoço do pai se tornava uma extensão maligna e longa, serpentando através do espaço que os separava e pairando sob seu rosto tomado pelo susto e completamente possuído pelo horror. A boca começou a se abrir em um novo sorriso de escárnio...
Acordou suada e ofegante na cama bagunçada. Havia chutado as cobertas pelo quarto, os travesseiros estavam espalhados e metade da colcha estava enrolada em seu corpo. A testa pingava gostas de suor frio, os cabelos eriçados caiam sob a face muito pálida da menina e o corpo inteiro estava tomado de por uma tremedeira sem fim. Respirou forte pela boca e arrastou-se como pode pela cama, até tocar os pés trêmulos e vacilantes no tapete bonina e fofo que cobria parte do quarto. A porta estava entreaberta e uma luz fraca vinha do andar de baixo. Abriu temerosa a porta e espiou pelo corredor. A casa continuava escura, apenas desperta pela luzinha fraca e amarelada que vinha da sala.
-Mãe? Pai!_chamou suplicante pelos pais, sem ouvir resposta alguma. Sentiu que alguém a observava do quarto dos pais, vizinho ao seu. Olhou para o lado apenas para vislumbrar o rosto retorcido com a boca escancarando um sorriso maligno e pontudo, vindo a toda velocidade em sua direção, com as muitas mãos de sombra percorrendo o corredor atrás da figura maldita e sem corpo...
Acordou novamente, em meio a gritos e mais suor e mais tremor. Os pais a acalentavam na cama com mãos macias e conhecidas, o pai preocupado e a mãe chorosa. Afagaram os cabelos da menina enquanto ela se agarrava a eles como um náufrago a um pedaço flutuante de madeira na imensidão do mar frio. O rosto estava entrecortado por rios de lágrimas, o corpo era um terremoto sem fim, os olhos perdidos e estatelados e o medo tatuado em cada célula do seu corpo... não conseguiu nem ao menos fechar os olhos pelo resto da noite. O relógio tiquetaquou 00:13h. E ela acordada até os primeiros raios de sol.

 ~ Continua

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