Estava sentada naquela salinha absurdamente clara. As paredes eram um
branco gritante com móveis marfim aqui e ali. Uma estante abarrotada de livros
multicoloridos repousava no canto esquerdo da sala, ocupando toda a parede
lateral. Do lado direito havia um estante com diversos porta-retratos com um
tom de creme irritante, de onde duas crianças loiras e muito gordas sorriam
meio abobadas para a menina. Havia um solitário pato cinza feito de gesso no
canto da estante (o que Cora achou muito idiota) e duas pedrinhas de cristal no
meio. Alguns livros e pastas de arquivo adornavam a parte inferior da estante,
entulhando com sua cascata de papel as prateleiras finas e estreitas de
madeira. Na sua frente, uma mesa clara com um tampo de vidro muito polido e
limpo, onde se viam diversos papeis e canetas, uma xícara brancamente
irritante, pastas, mais fotos das crianças gorduchas, uma planta meio morta e
uma senhora gorda sentada numa poltrona amarelo claro. Tudo naquela sala era
irritantemente claro demais.
A doutora Kátia W. Chapperton era uma senhora de uns 50 anos, acima do
peso e sempre muito sorridente. Os cabelos eram castanho tingidos e ficavam
sempre presos num rabo de cavalo encarapitado no topo da nuca, presos por um
lacinho amarelo brilhante. Os olhos escuros eram adornados por um bique de pés
de galinha e uma pinta preta e saliente com dois lindos pelos morava na ruga
próxima à orelha esquerda. Cora observou a mulher gorducha, que estava enfiada
em um vestido de seda lilás que certamente não era seu número, os pés atochados
em um saltinho do mesmo tom e uma meia-calça clara e com um fio puxado e pensou
logo em uma porca branca enfiada a contra gosto em um vestido de festa. Não
queria estar ali, mas estava atrás de resposta tanto quanto seus pais.
Depois do escândalo que aprontou após ver a marca da mão nos seus
tornozelos e da gritaria que arrumou quando seus pais insistiam que não havia
nada naquele tornozelo fino, eles se encaminharam para a sala da psicóloga
procurando alguma resposta, algum caminho a seguir, algum conselho ou quem sabe
um remédio. Os pais conversaram durante longos e entediantes 45 minutos,
enquanto a menina aguardava na sala de espera. Era uma salinha pequena e toda
amarela, num tom que parecia sorvete de creme derretido. Alguns quadros de
moldura branca pintavam aquelas paredes enjoativas aqui e ali, enquanto uma
mesa e uma estante de livros serviam de fortaleza para a secretária magrela e
de dentes brilhantes que ficava num tecla-tecla sem fim naquele computador
branco e barulhento.
Quando finalmente deixou o mar amarelo, Cora entrou na sala mais
irritante que já havia entrado. Precisou de alguns segundos e umas piscadas
rápidas de olho para se acostumar a tanta claridade. Entrou, sentou-se na
cadeira BRANCA, no meio daquela sala BRANCA, de frente pra mulher que mais
parecia uma porquinha sorridente. Estava deveras irritada, queria ir embora,
mas prometera aos pais que iria contar cada detalhe e responder cada pergunta
para a senhora Chapperton. E assim ela fez. Respondeu sobre algum possível
trauma, dialogou sobre os pesadelos constantes, pontuou as visões, esclareceu
sobre as horas que passou acordada, nomeou as amigas e discursou sobre o dia-a-dia.
A mulher apenas concordava, dava uma risadinha irritantemente estridente e
anotava qualquer coisa num bloco de folhas e começava com mais perguntas que
saiam sem fim por detrás daquela boca absurdamente sorridente. “Irritante!”
No final daquela hora (que Cora jurava de pés juntos que tinham sido
pelo menos 6 longas horas), a psicóloga chamou os pais da menina e a tortura
começou. Disse aos pais. e vez ou outra dirigia-se à menina, que aquilo não
passava de estresse, que o cérebro e o subconsciente da garota apenas reagia
aos impulsos sofridos pelo que ela via nos pesadelos, fazendo com que ela
pensasse que aquilo era real, que não teria fim e que ela poderia ter criado um
mundo de onde ela jamais sairia e que nunca poderia ser liberta. Cora ouvia
tudo incrédula, enquanto os pais se agarravam naquelas palavras e meneavam com
a cabeça a cada frase da mulher-porca. Saíram do oceano branco e amarelo com
uma Cora encaminhada a uma terapeuta a cada 5 dias.
Em casa, jogou-se cansada na cama, tirando os sapatos com os pés e
deixando-os onde caíram. Fechou os olhos e bufou. Não podia acreditar que ninguém
vira a marca no seu tornozelo. Estava ali, como se uma mão de dedos muito finos
tivesse apertado com força a carne e a pele branca, marcando uma praga vermelha
e arroxeada contornando o tornozelo. Coçou de leve o lugar. Abriu os olhos e
revirou os olhos, incrédula e debochada: o tornozelo estava ali, branco e
virgem de qualquer marca, como sempre.
-É, realmente estou ficando louca..._murmurou a menina, enquanto tirava
a blusa de frio azul com estrelas brancas, atirando-a em um canto qualquer.
Afofou de leve os travesseiros e deitou derrotada. Fechou os olhos e mergulhou
em um sono profundo e merecido. Já fazia quase um dia inteiro que ela nem ao menos
cochilava. Começou com um leve relaxamento nos músculos, as pálpebras pesadas,
o escuro tomando conta e o vazio na mente. Dormiu.
Ao abrir os olhos já era noite. Os ponteiros no relógio por cima da
porta marcavam 22:37h e o quarto estava emergido em trevas. Bocejou
espreguiçando-se e levantou da cama. Estava até um pouco contente por ter
dormido por algumas horas e não ter sonhado com nada, por não ter nenhuma mão
ossuda ou boca maldita visitando seus sonhos. Abriu a porta do quarto e foi
recebida pela luz tímida que vinha do andar de baixo, onde o barulho do
telejornal que o pai assistia na televisão e o tamborilar metálico dos potes e
panelas na cozinha, onde provavelmente sua mãe orquestrava uma refeição, vinham
lhe agraciar os ouvidos semidespertos. Arrastou os pés e pôs-se a caminhar escada
abaixo.
Passou pela figura do pai, entretido em alguma notícia ruidosa e foi
direto para a cozinha. A mãe estava de costas, cortando alguma coisa quando a
menina abriu a geladeira e pegou a garrafa de leite. Ao virar, viu a mãe com os
olhos lacrimosos e uma pilha de cebolas cortadas sobre a mesa. A mesma virou-se
de novo, sorrindo sem graça e voltando ao trabalho.
-Dormiu bem, minha filha?_perguntou a mãe em meio aos golpes lentos e
precisos da faca amolada. O cheiro forte do tempero sendo refogado no molho de
tomate preenchia o ar, enquanto o barulho da TV retumbava baixo pela porta. A
menina encheu um copo com o líquido branco e manchou-o com um pouco do marrom
do achocolatado.
-Por incrível que pareça sim... não tive nenhum sonho ou pesadelo, só
dormi._ Virou quase a metade do conteúdo do copo em alguns poucos goles e
sentou-se na cadeira vermelha perto da bancada da cozinha. Mal colocou o copo
no mármore frio e escuro e recuou num berro agudo. A mãe havia virado
sorridente para a filha, os cabelos negros da franja caindo sob os olhos e as
mãos negras e ossudas, finas feito garras estavam ocupando a ponta dos braços
da mãe. O negrume que escorria dos pulsos subia em voltas lentas e já havia
transformado mais da metade do braço na extensão negra, fina e endurecida que a
garota tanto conhecia dos seus pesadelos. Correu para a sala topando com o pai
de pé junto ao braço do sofá. Gritou novamente, já banhando as bochechas com
lágrimas pesadas e salgadas: o rosto do pai jazia em um sorriso cortado e cheio
de dentes pontiagudos, com um olho arredondado e sombrio vagando sozinho pela
extensão do rosto disforme e repleto de ébano. Mãos firmes a agarraram pelas
costas, enquanto o pescoço do pai se tornava uma extensão maligna e longa,
serpentando através do espaço que os separava e pairando sob seu rosto tomado
pelo susto e completamente possuído pelo horror. A boca começou a se abrir em
um novo sorriso de escárnio...
Acordou suada e ofegante na cama bagunçada. Havia chutado as cobertas
pelo quarto, os travesseiros estavam espalhados e metade da colcha estava
enrolada em seu corpo. A testa pingava gostas de suor frio, os cabelos eriçados
caiam sob a face muito pálida da menina e o corpo inteiro estava tomado de por
uma tremedeira sem fim. Respirou forte pela boca e arrastou-se como pode pela
cama, até tocar os pés trêmulos e vacilantes no tapete bonina e fofo que cobria
parte do quarto. A porta estava entreaberta e uma luz fraca vinha do andar de
baixo. Abriu temerosa a porta e espiou pelo corredor. A casa continuava escura,
apenas desperta pela luzinha fraca e amarelada que vinha da sala.
-Mãe? Pai!_chamou suplicante pelos pais, sem ouvir resposta alguma.
Sentiu que alguém a observava do quarto dos pais, vizinho ao seu. Olhou para o
lado apenas para vislumbrar o rosto retorcido com a boca escancarando um
sorriso maligno e pontudo, vindo a toda velocidade em sua direção, com as
muitas mãos de sombra percorrendo o corredor atrás da figura maldita e sem
corpo...
Acordou novamente, em meio a gritos e mais suor e mais tremor. Os pais
a acalentavam na cama com mãos macias e conhecidas, o pai preocupado e a mãe
chorosa. Afagaram os cabelos da menina enquanto ela se agarrava a eles como um
náufrago a um pedaço flutuante de madeira na imensidão do mar frio. O rosto
estava entrecortado por rios de lágrimas, o corpo era um terremoto sem fim, os
olhos perdidos e estatelados e o medo tatuado em cada célula do seu corpo...
não conseguiu nem ao menos fechar os olhos pelo resto da noite. O relógio
tiquetaquou 00:13h. E ela acordada até os primeiros raios de sol.
~ Continua
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